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Anexo:Imprimir/Grãos de Mostarda

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Índice

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Contos Miúdos

A Alcides Nogueira da Silva,
Médico Homeopata,
Estes grânulos de
Sinapis Nigra,
de 1ª
(t. 1 à noite)

"31 - ... semelhante ao grão de mos-
tarda, que o homem semeia no seu campo;
"32 - O qual é, realmente a mais peque-
na das sementes, mas, crescendo, é a maior
das plantas, e faz-se uma árvore, de sorte que
vêm as aves do céu, e se aninham nos seus
ramos.
Mateus, 13-31, 32

Desde a Exposição Pecuária realizada em Mineapolis, não se falava em outra coisa, nos centros criadores, senão no touro "Bellerophon", premiado com 50.000 dólares. Era uma beleza de animal. E como procriador, um verdadeiro assombro, não havendo notícia de outro igual não só no Minesota como, mesmo, nos Estados Unidos.

Encerrada a grande feira, e tornando o "Bellerophon" à fazenda natal, continuou a romaria dos criadores. De toda a parte vinha fazendeiros, entusiasmados com as notícias sobre o formidável pai de malhada. E de tal forma que o seu proprietário, o velho e conceituado criador James Smith, resolveu meter o animal no estábulo e cobrar de cada visitante a quantia de dois dólares. Era um meio de reduzir o número dos inoportunos e, sobretudo, de pagar-se do tempo consumido com as explicações.

Certo dia, bateu à porta da fazenda um cavalheiro forte, ares galhardos, de pulso de ferro e quatro palmos de costa.

— Pode-se ver o touro? — indagou de James Smith, que acorreu, para atendê-lo.

— Pois não. O preço da visita está marcado em dois dólares.

— Dois dólares?... — estranhou o visitante, estacando.

E após um instante:

— Não; então, não o vejo... O senhor compreende que eu tenho grandes responsabilidades de família, e dois dólares me fazem falta. Sou "mormon" e...

— O senhor é "mormon"?

— Sim, senhor. Sou "mormon", tenho nove mulheres e quarenta e um filhos, e o senhor compreende o que devem ser as minhas despesas.

— Nove mulheres e quarenta e um filhos?... — fez James Smith, arregalando os olhos. — Então o senhor vai ganhar dois dólares.

E arrastando-o pelo braço:

— Eu quero mostrar o senhor ao meu touro!

Sem pai, sem mãe, sem parentes, o Conrado voltara do serviço militar sem saber, mesmo, para onde fosse. Dos amigos da família, poucos restavam; e entre estes estava o Antônio Luiz, proprietário de uma pequena casa de móveis, cuja esposa o havia abandonado no mundo deixando-lhe, apenas, como documento de fidelidade matrimonial, a Ernestina e a Lulu, que andavam, agora, a primeira pelos vinte anos, a segunda pelos dezoito.

Acolhido pelo Antônio Luiz, que lhe deu casa e emprego, achou o Conrado que o melhor modo de pagar ao velho aquela dívida de gratidão seria casar uma das meninas, embora as soubesse alegres demais, para um homem trabalhador. E foi com essa idéia que, um dia, em conversa, tocou no assunto ao comerciante.

— Mas qual das duas você pretende? — indagou o velho.

— Eu? A mim é indiferente. O senhor que as conhece bem, é que pode ver qual das duas me servirá.

Antônio Luiz puxou a última fumaça do cachimbo de espuma, bateu-o, desentupindo-o, e falou, com a mão na consciência.

— Meu filho, isso depende de você. Se você pretende mulher que lhe dê filhos, fique com a mais velha; se, porém, quer uma que não lhos dê, escolha a mais nova.

E a um olhar interrogativo do rapaz:

— Sim, porque, se ela tivesse de tê-los, já os teria tido!

(André J. Renard)

A feira de Paris havia atraído de uma província longínqua um casal de salsicheiros afastados do negócio, o sr. e sra. Laripette. Transferindo o estabelecimento, haviam eles se encaminhado, indistintamente, para o galpão consagrado exclusivamente ao comércio de salchichas. E aí, nada lhes chamou tanto a atenção como uma grande máquina complicadíssima, cujo funcionamento era explicado pelo proprietário.

— Aqui tendes, senhoras e senhores, um mecanismo verdadeiramente maravilhoso, que faz, ele só, o trabalho de cinqüenta operários. Basta empurrar um porco vivo por esta porta, a porta n° 1, assim (e fez entrar um porco autêntico pelo orifício indicado), pôr a máquina em movimento... assim... e esperar um instante. E vê-lo-eis sair do outro lado, completamente transformado em salsichas, chouriço, presunto e miúdos de toda a qualidade. Os ossos são transformados em adubos e a pele em carteiras para dinheiro!... A operação está terminada. Se quiserdes vos aproximar deste estrado, vereis aparecer a mercadoria anunciada!

Boquiabertos, Laripette e a mulher chegaram-se, desconfiados, para ver o prodígio.

— Entretanto, senhores e senhoras — continuou o propagandista, — ides ver coisa ainda mais assombrosa. No caso de produtos obtidos não parecerem satisfatórios, é preciso dar atrás com a maquina, para engordar o porco de novo, ou corrigir, com ele vivo, o defeito verificado na mercadoria. Eu confesso, mesmo, que não tenho aqui senão um porco, e que é ele que serve diariamente nas minhas experiências. Vou, pois, reconstituí-lo, dando com a máquina para trás... assim...

Interessado no manejo do aparelho maravilhoso, o sr. Laripette curvou-se para a frente, afim de acompanhar com os olhos, até o último instante, o desaparecimento do presunto. Tanto, porém, se curvou, que foi apanhado por uma engrenagem formidável da máquina, a qual o arrebatou, em dois safanões, fazendo-o desaparecer no tumulto vertiginoso das rodas.

As mãos na cabeça, os olhos vidrados pelo terror, a sra. Laripette soltou dois gritos, e ia soltar o terceiro, quando o dono da máquina a tranqüilizou:

— Calma, minha senhora, calma. Não há perigo nenhum. Funcionando para trás como está agora, a máquina faz voltar todas as coisas ao seu estado primitivo e natural. Nessas condições, o seu marido não corre nenhum risco, pode ficar certa. Além disso, a operação está terminada, e a senhora vai vê-lo sair, são e salvo, por aquela porta, em companhia do porco.

E abriu-se a porta n° 1.

E saíram dois porcos.

Foi um contentamento para o comendador Felisberto a notícia, que a esposa lhe dera, de que lhe ia oferecer, em breve, um pequeno herdeiro do seu nome, e, sobretudo, da sua fortuna.

— É verdade isso? — exclamou o velho capitalista, contendo os ímpetos do coração.

E como fosse fraco dos nervos, desatou a chorar de satisfação, ensopando de lágrimas de felicidade o seu alvo lenço de linha, vasto como um lençol.

A generosidade do comendador, durante os meses de expectativa, foi espantosa. Fraldas, camisinhas, sapatinhos de lã, barretinhos de seda, tudo isso entrava em quantidade pela porta do palacete, em que dona Enedina engordava contente, esperançada com a idéia de ter, enfim, uma criaturinha do seu sangue.

Passou-se, porém, o quinto mês. E o sexto. E o sétimo. Este último, passou-o o velho capitalista a procurar, sorridente, um nome para o pirralho. E concluiu:

— Se for homem, chamar-se-á Benevenuto.

— E se for mulher? — indagou a esposa.

— Terá o nome da mãe. Será, também, Enedina...

Antes do oitavo mês, o comendador mandou a esposa para a Europa. E trinta dias depois, recebia o seguinte telegrama:

"Comendador Felisberto Maia — Rio. — Extrai fibroma. Saudades — Enedina".

Para o capitalista, essa notícia foi um choque. E foi furioso, apoplético de raiva, que respondeu imediatamente:

"Madame Felisberto Maia — Paris — Combinação aqui foi dar outro nome criança. Caso insista dar nome Fibroma recém-nascido suspenderei mesada — Felisberto".

E respirou, com força. Era pai...

Se foi esse o desgosto que matou Dona Benvinda, ninguém sabe: o que é fato, é que o sr. Atanásio tinha uma predileção especial pelas bebidas, a ponto de passar semanas inteiras emendando as carraspanas.

O que, entretanto, ninguém pode contestar, é que ele adorava a mulher. É verdade que não a obedecia, quando ela lhe suplicava, agarrando-lhe as mãos:

— Não bebas mais, Atanásio! Tem piedade de mim! Isto me matará de vergonha!

As pessoas que ouviam isto asseguravam que Dona Benvinda morreu, mesmo, de vergonha; outras acham, porém, que foi de umas pauladas que o marido lhe aplicou, ao regressar, alta madrugada, mais bêbado do que nunca.

O sentimento de viúvo foi, entretanto, profundíssimo. Um fato o demonstra. Certa noite, entrou ele, com um antigo companheiro, em uma das cervejarias da Brahma, e sentou-se:

— Que tomas? — perguntou o outro.

— Nada.

— Nada? Tu não tomas nada?

— Não posso, filho! — obtemperou o Atanásio. — Eu não posso beber; tu não vês que eu estou de luto?

— Mas, isso é o de menos! — tornou o outro. Há bebidas, aqui, para pessoas de luto.

E batendo na mesa, com força:

— Cerveja preta, para um!...

O Altino Praxedes andava já pelos trinta anos quando, casado, e com um filho, abandonou a sua fazenda das "Três Pedras", no Estado do Rio, para vir à capital da República submeter a esposa a uma operação. E como não tivesse parentes, nem amigos, nem conhecidos, foi hospedar-se, com a família, em uma pensão do Flamengo, onde lhe prometeram toda a comodidade.

Ocupado, ele mesmo, em arranjar médico e casa de Saúde, era-lhe um tormento aquela vida, acima e abaixo, numa terra desconhecida. De manhã, saía a tratar de negócio. Duas horas depois, porém, se achava outra vez em casa, a saber como estava passando a esposa. E tão inquieto andava longe da companheira, que a dona da pensão, penalizada, aconselhou:

— Sr. Praxedes, por quê o senhor, em vez de vir, não telefona para sua mulher? É mais rápido, e muito mais cômodo.

— É verdade, — concordou o hóspede, que nunca tinha falado, em sua vida, num telefone.

No dia seguinte, estava o provinciano no centro da cidade, quando se lembrou de telefonar para casa. O aparelho, e a utilidade de cada uma das peças, ele o conhecia, por ter visto outras pessoas falando. Nunca, porém, havia falado, ele próprio, de modo que foi trêmulo, quase vermelho, que pôs o fone no ouvido, pedindo:

— Ligue para minha mulher; sim?

— Número, faz favor?

Praxedes empalideceu:

— Qual número, qual nada, dona! Eu sou um homem sério. Eu só tenho uma mulher, e essa não tem numeração nenhuma!

E enganchando o fone, com estrondo:

— Trate sério; ouviu?

(Tristan Bernard)

Uma família inglesa viajava de automóvel, no último estio, pela formosa terra de França. Como atravessava uma aldeia do Delfinado, parou, para almoçar.

A região era famosa, parece, pelos seus "champignons". Pelo menos era o que afirmava o "Baedeker", e os nossos ingleses não quiseram passar por aqueles lugares sem provar aquela preciosidade regional. Os nossos viajantes não sabiam, porém, uma única palavra de francês e não havia na aldeia um único habitante que soubesse inglês.

Como poderiam eles, pois, explicar que desejavam um prato de tão deliciosos criptogamos?

John, o filho do casal, teve uma idéia de gênio: tomou de um lápis e de uma folha de papel, e, tão bem quanto possível, desenhou um "champignon", mostrando-o ao estalajadeiro.

Este olhou o desenho, pensou, pensou, e ao fim de um instante bateu na testa.

— Ahn! — fez, sorrindo, como quem acabava de compreender.

Ao cabo de alguns minutos voltou... com um guarda-chuva!

Nada encantou mais os provincianos que vieram ao Rio para as festas do Centenário, do que as mulheres que os tentavam nos cafés, nos cinemas, nas esquinas. Milhares deles ficaram depenados na primeira semana, vendo-se obrigados a tornar à província antes, mesmo, da abertura da Exposição. Em compensação, outros mostraram-se espertíssimos e econômicos, destacando-se, entre eles, o coronel Agostinho Nogueira, proprietário e um pequeno engenho em Pernambuco.

Solto, uma noite, na cidade, o coronel pôs-se a andar pela Avenida, indo ter ao ponto dos bondes, à Rua Santo Antônio. Adivinhando-lhe a origem e o pensamento, uma francesinha aproximou-se, o olhar petulante, o sorriso perverso, o gesto desafiador.

— Meu benzinho, por quanto você dá um beijinho na gente? — aventurou o velhote, com a cara mais sem-vergonha deste mundo.

— Cinqüenta mil-réis, "mon cheri!"

A essas vozes, o coronel meteu o guarda-chuva debaixo do braço, e continuou a andar, tomando pela Treze de Maio. À esquerda da Evaristo da Veiga, sofreu outro assalto. Fez a mesma pergunta.

— Vinte mil-réis, "mon p'tit!"" — informou a aventureira.

Parcimonioso e ajuizado, o "centenário" nortista não deu resposta. Pôs-se a caminhar, de novo, guarda-chuva em punho, até que, na praia da Lapa, novamente abordado, ouviu a terceira resposta.

— Dez mil-réis, "p'tit cochon"!

Ia o coronel, já de caminho, refletindo nessa redução de preços, obtida à proporção que avançava, quando se encontrou com o seu amigo, patrício e compadre, o capitão Teneredo Bordallo.

— Ó compadre, por aqui?

— É verdade, compadre!

— Aonde vais?

Agostinho meditou rapidamente sobre as economias a fazer, e informou:

— Homem, eu mesmo não sei.

E após um instante, pensando nas reduções já conseguidas:

— Mas, pelo que vejo, compadre, eu vou a Copacabana!

O Octaviano Robledo era simples segundo-anista de medicina quando foi morar na "Pensão Fabrício", à rua Haddock Lobo, em frente, mesmo, à residência do coronel Viana Guedes. Alto, forte, bonito, possuía uma "pose" de tal ordem, que toda a gente o tomava, não como estudante, mas como professor da Faculdade. E foi como tal que o tomaram Dona Corina, esposa do coronel, e a Victorinha, sua filha única, e tão forte já, que parecia mais uma irmã que sua filha.

Estabelecidas as relações de sacada para sacada, o Octaviano acabou por ir visitar o velho oficial reformado, e contar-lhe os seus propósitos de casamento. Como informação, tinha apenas a dizer que era estudante, de hábitos morigerados, adorando o lar e tendo como ideal a vida no seio da família.

Duas semanas após a admissão do rapaz na residência do coronel, entrava este em casa, quanto estacou, de repente: na saleta, o decote generosamente aberto, Dona Corina sustentava sobre os joelhos, maternalmente, a cabeça do Octaviano, o qual gozava esta situação infantil, de olhos fechados.

— "Seu" patife!... — exclamou o oficial, avançando contra o grupo.

Abrindo ligeiramente um dos olhos, o Robledo não se assustou.

— Perdão! — disse; — o senhor não tem razão.

E com um sorrizinho canalha, sem mudar de posição:

— Eu não disse ao coronel que o meu ideal era viver no "seio" da família?

O grande acontecimento de Niterói naquela semana, fora a estréia, no teatro municipal, de uma companhia de variedades, em que o russo Miguel Boronoff, ilusionista mundialmente consagrado, realizava o milagre de engolir, à vista do público, um sabre de dois palmos e meio. Vestido sumariamente em uma roupa de meia, para impedir qualquer idéia de truque, o artista chegava ao meio do palco, apresentava à platéia uma bandeja com uma dúzia de sabres, para que os espectadores escolhessem um, e, desembainhando-o, a boca para cima, enfiava a lâmina, goela a dentro.

Naquela noite, porém, o teatro encheu-se como nunca. Não havia uma única cadeira vazia. E em uma destas, logo na primeira fila, estava o Manoelzinho Sampaio, o "almofadinha" de vinte e um anos, empoado como uma donzela, carminado como duas e nervoso como três.

Concluído o primeiro número, em que se havia exibido uma dançarina sevilhana ressoante de castanholas, chegou a vez de Miguel Boronoff, que, saudado por uma salva de palmas, começou, logo, o seu trabalho.

— Senores, — pediu o artista, na sua meia língua de russo nascido na Argentina, apresentando a bandeja com as armas: — senores, yo voy a comer este faca, hasta el cabo. Escojan usteds la faca a engolir!

Um cavalheiro da segunda fila escolheu um sabre de Marinha, grande, de dois palmos. Tirou-o da bainha, examinou-lhe a consistência da tábua da cadeira, repinicou-o na unha, e, entregando-o ao artista, esperaram, todos, emocionados, o sucesso do número.

Na sua cadeira, trêmulo, pálido como um morto, Manoelzinho Sampaio torcia as mãos, nervoso. Parecia que ele é que ia engolir o sabre. Miguel Boronoff tomou, porém, a arma, pôs a mão esquerda na cintura, lançou o pescoço para trás, abriu a boca para cima, suspendeu o braço direito à altura de meio metro do rosto, e descia-o, lento, com a lâmina em riste, quando o Manoelzinho deu um pulo da sua cadeira.

— Senhor, — pediu, branco de emoção, os olhos cheios d'água; — pelo amor de Deus!

E, aflito, súplice, torcendo as mãos, numa agonia:

— Engula a bainha primeiro... Sim?

A colônia israelita não possuía representante mais opulento que Isaac Aben-Abib. As suas festas reuniam sempre o que havia de seleto entre os judeus, sendo de notar, também a afluência de vultos representativos da cidade, alheios, embora, à sua seita religiosa. Fornecedor do governo e amigo dos políticos, fazia parte da alta sociedade carioca sem, contudo, se desligar do seu credo e, sobretudo, dos seus companheiros de fé.

A reunião daquela noite, em que o casal Aben-Abib comemorava o 22° aniversário da sua constituição, era, por isso mesmo, um misto de mundanismo e solidariedade religiosa. Os salões do suntuoso palacete, repletos e iluminados, fervilhavam de uma sociedade encantadora, em que predominava, entre as figuras femininas, a linha pura do tipo israelita.

Mais formosa, porém, que qualquer outra, era, sem dúvida, Rachel Benoliel, a jovem esposa de Elias Benoliel, dono de uma casa de penhores à rua Luís de Camões. Alta, esbelta, magnífica, trazia nos olhos negros a umidade dos jogos da Palestina, e essa gracilidade soberba das bravias corças do Líbano. E foi exatamente para ela que, ao penetrar na festa, o dr. Epaminondas Borges, o conhecido mundano e diplomata em disponibilidade, encaminhou a sua esperança de conquistador profissional.

Clara e linda, a boca sangrando, os dentes miúdos e brancos, tomava a formosa israelita o seu pequenino cálice de licor, junto ao "buffet", em companhia de duas amigas, quando, numa curvatura, risonho e, na sua opinião, irresistível, Epaminondas Borges se aproximou.

— Madame — disse, sorrindo, o monóculo cravado no olho; — eu seria o mais feliz dos mortais se me fosse permitido matar a sede secular do meu coração nesse pequenino cálice em que V. Excia. acaba de pousar a borboleta dos seus lábios divinos!

A testa ligeiramente franzida, as unhas rosadas cravando, como dois rubis a um topázio, o cálice apenas tocado, Rachel Benoliel ouviu, calada, o galanteio. E quando o insolente acabou, desfranziu a testa.

— Ah! o doutor está enganado; mas, não é comigo, não! É ali com aquela minha amiga! — disse, indicando outra.

E num sorriso jovial, diabólico, desconcertante:

— O doutor não sabe que é Rebeca, e não Rachel, que dá de beber aos camelos?

(George Auriol)

No tempo em que era apenas noivo da sua esposa de hoje, o capitão Lundstrteon residia na cidade de Kungsback (onde, diz ele, há uma velha fortaleza magnífica) e costumava ir visitar a sua futura, que morava três ou quatro milhas mais longe, em uma povoação denominada Jonsered. Quando fazia bom tempo, o velho pai de Elsa, a moça, lhe dizia:

— Lundstreon, meu amigo, o dia está convidando a gente a dar um passeio ao lado de quem se quer bem; não é verdade? Beba comigo um copo de vinho... Sko!... Sko!... (à nossa saúde!) e vá! Você é um excelente rapaz!

Lundstreon alugava então uma pequena carriola, e saía a passeio com a rapariga, contente um, e contente outro, porque, assim, se podiam beijar à vontade. Certo dia, tomou ele a carruagem, mas o dono dos cavalos explicou-lhe:

— Eu não posso dar hoje o pônei de costume. Está doente. Vou atrelar, porém, meu cavalo castanho. É um animal roceiro mas, no resto, um bom animal.

— Não há dúvida, — concordou Lundstreon; — desde que ele ande, vai tudo bem.

E partiu, imediatamente, com a sua Elsa, pelas campinas floridas.

A certa altura, porém, o maldito cavalo castanho começou a fazer barulho por trás. Os senhores compreendem o que quero dizer; não? É um vocábulo difícil de proferir; uma expressão vil; um termo de se lhe torcer o nariz. Primeiro... segundo... terceiro... décimo... E Lundstreon cada vez mais aborrecido com esse inconveniente, que, com franqueza, tirava toda a poesia do passeio.

A princípio, pensou que fosse apenas por um momento; mas, quanto mais o cavalo corria, mais estalava. Parecia ter na barriga uma metralhadora.

Lundestreon não sabia o que dissesse, não ousando, mesmo, olhar a noiva, até que teve uma idéia: parar num albergue. Desceu, apeou também a moça e, tomando-lhe do braço, começou, visivelmente confuso:

— Minha querida, eu estou envergonhadíssimo... Perdoa-me todo esse inconveniente... esses rumores que tu vinhas escutando...

Elsa tornou-se vermelha como um galo.

— Ora, para que você me disse isso?!... — gemeu, irritada.

E como quem sente uma desilusão:

— Eu pensei que era o cavalo...

Quando se divulgou pela cidade a notícia de que Alexandre da Gama assassinara a mulher com sete punhaladas, ninguém atinou com o motivo daquele crime. Sabia-se, apenas, que os dois haviam passado a tarde fora de casa, e que, na volta, se haviam empenhado numa discussão, que terminou naquela desgraça.

Um repórter conseguiu, porém, descobrir tudo. Supersticiosos os dois, tinham o Alexandre e a esposa, convencionado procurar uma cartomante, para sondarem o poço misterioso do seu destino.

— Toma: leva dez mil réis para a consulta, — dissera o Alexandre.

E metendo, por seu turno, dez mil réis no bolso do colete, ganhara a rua, combinando um encontro às seis em ponto, em frente à casa da bruxa.

À hora aprazada encontraram-se.

— Que te disse ela? Indagou o rapaz, ansioso.

— Boas coisas — informou a Rosita.

— Disse-te que ias ter filhos?

— Disse.

— Quantos?

— Três.

— Como?

— Três, — confirmou a rapariga.

O Alexandre ficou vermelho.

— E como é — rugiu, — que ela me disse que eu só teria um?

Horas depois, dava-se o crime.

O delegado acabava de entrar, pendurando a bengala, o chapéu e o "cache-nez", no cabide da repartição, quando o "prontidão" avisou estar no xadrez, à espera de interrogatório, um indivíduo preso na praça Tiradentes duas horas após o furto de um relógio.

— Manda-o subir... — ordenou a autoridade.

Ao fim de dois minutos, entrou na sala, custodiado por dois policiais, o autor do furto. Era um rapaz claro, de cabelo de fogo, rosto semeado de sardas, vestindo calça de casimira preta, paletó escuro, camisa sem gravata. A autoridade fechou a cara, improvisando uma fisionomia severa, e inquiriu:

— Foi o senhor que furtou este relógio?

— Foi, sim, senhor, — continuou, calmo, o rapaz.

— Sabe quem é o dono?

— Certo, certo, não sei, não, senhor. Só me lembro que era um sujeito de preto, que ia com uns embrulhos na mão.

— E ele não deu por falta do objeto?

— Parece que não. Quando o guarda me prendeu, eu estava junto do lampião, dando corda.

O delegado deixou passar um instante, e tornou:

— E o senhor não está arrependido de ter furtado esse relógio?

— Eu? Arrependidíssimo! — confirmou, com força, o ladrão.

E com ar de desprezo, o beiço torcido:

— Isso lá é relógio, "seu" doutor?! Em duas horas tive de dar corda nele três vezes!... Se o senhor ficar com ele vai se arrepender!

E encostou-se à parede, familiar.

O maior desejo do Alselmo Pimenta era possuir um papagaio. Toda vez que partia um amigo para o norte, a sua encomenda era certa:

— Manda de lá um papagaio; ouviste? Eu pago as despesas!

E nunca ninguém lho havia mandado. Um dia, porém, lá ia o Pimenta pela rua Sete de Setembro, quando viu, em uma casa de aves, uma gaiola com dois "louros" que eram uma beleza, como figura e como colorido: um maior, todo verde e amarelo, com encontros vermelhos nas asas, e outro menor, mais leve, demonstrando no porte e nas penas a modéstia e a fragilidade do sexo.

— Quer vender um desses papagaios? — indagou, entrando, do dono da casa.

— Não, senhor; isto é um casal: um macho e uma fêmea. O macho é aquele maior, mais vistoso, mais bonito. Mas não são para vender, não. Agora, se o senhor quiser, eu lhe vendo aí uns ovos; dentro de quinze dias estão tirados.

Anselmo Pimenta comprou quatro ovos, a dois mil réis cada um. Em casa, pôs debaixo de uma galinha que chocava, e, doze dias depois, ficou escandalizado, ao ver sair dos quatro ovos um pinto e três pombos. Pondo o chapéu na cabeça ganhou a rua. Na casa de aves perguntou pelo papagaio.

— Está ali, — disseram-lhe, indicando-lhe a gaiola, com o casal de "louros".

Anselmo aproximou-se, procurando, com os olhos, a ave maior.

— Papagaio, — disse, em tom quase confidencial, — eu preciso falar com você. Quem avisa amigo é...

E arregalando a pálpebra esquerda com o dedo, indicando a ave fêmea:

— Abra o olho com ela, hein?!...

(Bernard Gervaise)

A MÃE — Ainda não fez efeito, doutor! Nunca vi uma coisa assim!

O MÉDICO — Nenhum efeito?

A MÃE — Absolutamente nenhum. Eu chego a pensar que o farmacêutico talvez se tenha enganado ao preparar a receita.

O MÉDICO — Seria possível? Mostre-me o que ficou no fundo da garrafa.

A MÃE — aqui está, doutor; veja.

O MÉDICO — Hum! Hum! Não; não houve erro. É esta mesmo a poção laxativa que eu receitei... E a senhora deu como eu prescrevi: dois cálices, dos grandes?

A MÃE — Sim senhor. E os nosso cálices são bastante grandes... São destes...

O MÉDICO — De manhã, em jejum?

A MÃE — Sim, senhor.

O MÉDICO — E com aquele quarto de hora de intervalo?

A MÃE — Sim, senhor; contado a relógio.

O MÉDICO — É interessante. Interessante e incompreensível!

JULINHO — (derretendo-se em lágrimas} — Hi! hi! hi! Eu sei... porque é... que não fez... efeito... Eu sei!... hi! hi! hi!...

O MÉDICO — Que foi, meu filho? Diga...

JULINHO — Eu não quero dizer... hi! hi! hi!...

A MÃE — (derretendo-se em lágrimas) Dou duas moedas para o cofre... Diga!

JULINHO — Eu quero mais. Eu quero cinco moedas... Eu quero que não me castiguem... quando eu disser... hi! hi! hi!

A MÃE — Pois, bem, eu dou... Que foi que você fez? Vomitou a poção?

JULINHO — Hi! hi! hi!... Eu não vomitei a poção... Mas eu não fiz efeito... porque eu estava brincando com a garrafa... hi! hi! hi!... e engoli a rolha!...

Otaviano Cabreira Rocha andava pelos quarenta e cinco anos quando, fatigado daquela vida de solteiro, resolveu montar, também, a sua casa. Estava cansado de mundanismo, daquela existência de conquistas e sustos, e como, para o soldado dessas batalhas elegantes, a reforma é o lar, a sua idéia foi, logo, aquela, de constituir família.

A experiência havia-lhe dito que, em matéria de fidelidade matrimonial, tudo depende do esposo. E como estava certo de que nenhum esposo seria mais vigilante, casou-se com Leléa Borges, rapariga de vinte e dois anos, que andava, também, à procura de marido.

— Olha, minha filha — confessou o Cabreira, dois meses depois do casamento: — nós casamos em igualdade de condições: tu eras, já, uma rapariga experiente; eu, com a existência que levei, um homem perfeitamente vivido. Temos, pois, todos os elementos para ser felizes.

— Isto era quando nos casamos, Otaviano! — protestou a moça, fazendo-lhe uma festo no rosto cavado pelo tempo. — Hoje, a nossa situação é muito diferente.

E com um biquinho de zanga, num amuo gracioso:

— Tu enganas por aí muito marido; e eu?

E concluiu, queixosa:

— Eu, pobresinha de mim! Só engano um...

O velho desembargador Bonifácio da Rocha é o que se pode chamar um puritano. As modas e os costumes atuais põe-lhe tremores nas mãos e na voz, fazendo-o agitar o bengalão de peroba, numa formidável ameaça coletiva.

— Só, mesmo, chuva de enxofre!... — exclama, ao ver, no bonde, uma senhora, ou uma senhorita, de manga mais curta, ou de vestido mais decotado.

E se vê um pelintrote, um "maricas", um "almofadinha":

— Só, mesmo, chumbo derretido! Isto é um escândalo!...

Como as moedas sejam, hoje, muito diferentes das do seu tempo, e o desembargador esteja com a moralidade apurada no cadinho da velhice, tudo, aos seus olhos, constitui indecência, imoralidade, presente ou futura.

Uma destas tardes ia o velho magistrado tomar o seu bonde das Águas Férreas, quando, ao entrar no refúgio da Galeria Cruzeiro, descobriu ali, em um dos bancos, uma mulher do povo, portuguesa, que amamentava despreocupadamente o filhinho. Camiseta acima do umbigo, o pirralhinho, que estava quase nu, sugava com avidez o seio materno, agitando as perninhas gorduchas, os olhos quase fechados, numa demonstração de indizível contentamento.

Ao dar com os olhos naquele grupo comovente de simplicidade, o desembargador ficou rubro.

— Sim, senhor! — exclamou. — Que geração, essa, que vem aí!

Agitou o bengalão de peroba, no gesto característico da sua indignação, e rugiu:

— Desse tamanhozinho, já vive à custa das mulheres!...

E afastou-se, agitando a peroba.

Testa franzida, fisionomia austera, palavras medidas, o delegado do Distrito inquiria, procurando a verdade, a vítima do delito. Roupa humilde, meias brancas de algodão, sapatos pretos e baratos, os olhos baixos, Maria Odete não fazia senão chorar. Para não demorar, porém, o inquérito, Dona Eufrásia, mãe da menina, ia prestando os esclarecimentos:

— Eu tenho uma pensão na Saúde, "seu" doutor. Dou comida e moradia a onze hóspedes, no meio dos quais aquele amaldiçoado. Quem me ajudava era, esta filha. Pois bem: uma noite, a menina estava deitada, dormindo, coitadinha! E o desgraçado, o João Isidoro, abusou dela!

— Foi exato, rapariga? — indagou a autoridade.

— Foi, sim... senhor! — soluçou a pequena, o lenço nos olhos.

— Você estava deitada?

— Sim, se... nhor!...

— Dormindo?

— Sim, se... nhor!... — gemeu a menina, afogada em soluços.

Letra larga, mergulhando a pena com estrondo no tinteiro, o escrivão tomava notas rápidas do depoimento. E foi quando o delegado, para que nada faltasse, inquiriu, ainda:

— E onde estava você dormindo?

— Eu?

— Sim.

E a rapariga, enxugando, com o força, os olhos muito vermelhos:

— Na cama dele, sim, senhor!

(Pierre Veber)

Frio, impassível e tenaz, João era o "repórter", e nada mais. A sua profissão o havia dissecado, ou melhor, desumanizado. Não conversava, traçava linhas.

Seu punho esquerdo estava coberto permanentemente de notas a lápis, de endereços e apontamentos; o direito era uma série de sinais, que só ele entendia. Ninguém lhe conhecia parentes, nem amigos, pois isso lhe tomaria tempo. Em compensação, conhecia toda a gente e apertava a mão a quantos encontrava.

João era capaz de ações heróicas. Havia ficado vinte e quatro horas à porta de um hotel, sem espirrar. Durante o cerco de Paris, deixar-se-ia morrer de fome ao lado dos seus pombos-correio, preferindo isso a comê-los.

Uma tarde, ao entrar no jornal, entregaram-lhe uma carta. Pela letra reconheceu, logo, que era daquela que lhe tomava conta da roupa e do coração, e, de súbito, lembrou-se que não aparecia em casa há quatro dias. A carta dizia:

"Se não apareceres em casa esta noite, até onze horas, às onze e meia estarei morta".

João não pestanejou. Esperou pacientemente a meia-noite. A essa hora, sem que a voz lhe tremesse, chamou um colega:

— Sam, vai a tal rua, tal número, segundo andar, à direita. Há, lá, um caso sensacional: uma rapariga bonita; e nova, acaba de suicidar-se, por amor. Vai, e traz-me as notas, para a notícia.

E ficou esperando, certo de que o seu jornal seria o único a dar o "furo". Para economizar tempo, começou a escrever a "cabeça" da notícia, e a sua mão nem, sequer, tremia.

Só no dia seguinte Sam voltou à redação, João interroga-o, severo:

— Você não foi onde eu mandei?

— Fui, sim.

— E então? A rapariga de que falei?

— Encontrei-a, sim; mas, não se tinha suicidado, ontem, não.

— E hoje?

— Hoje? Pior! — informou o companheiro.

E com ar feliz:

— Quando, hoje, de manhã, eu e ela nos levantamos, nem falamos nisso!

— E quando é que receberás o meu beijo, nessa boca de rosa? — indagou, comovido, Frederico Duval, os braços apoiados no balcão da casa de modas, olhando, nos olhos, aquela encantadora "vendeuse" de pupilas da ouro, que era a sua maior preocupação dos últimos tempos.

A moça baixava os olhos, distraída, as mãos nervosas e claras alisando o vestido de um manequim, e confessava, com tristeza:

— Não pense nessa coisas, Fred. No dia em que se desse isso, nunca mais nós nos veríamos! Eu teria vergonha de você, e nunca mais lhe apareceria!

A sinceridade com que Onezinda lhe dizia isso, fazia com que o rapaz, tão audacioso em outras circunstâncias, não insistisse no pedido. Respeitava aquela pureza, a ingenuidade daquele sentimento, a melancolia daqueles olhos.

Há no amor puro, porém, um momento, em que os anjos se retiram para entregar os noivos ao diabo. E foi isso, exatamente, que sucedeu certa manhã, quando, por insistência do Frederico, a rapariga lhe foi bater à porta do quarto, na pensão, com a condição, embora, de, depois, nunca mais se verem na vida.

Ao meio do dia separaram-se. Nunca mais, pela ameaça da moça, se deviam ver. Aquele beijo de paixão tinha de isolar, para sempre, duas criaturas, dois destinos, duas vidas. E era por isso que, ao abrir a porta para deixar Onezinda no corredor. Frederico Duval tinha os olhos velados pela tristeza mais funda.

— Adeus, Onezinda! — disse, quase chorando. — Adeus... para sempre!

— Adeus, Fred! — gemeu a moça, os olhos no bico do sapato.

E, num assomo de coragem, de decisão, de energia, ganhando a porta:

— Até... de tarde, Fred... Sim?...

Foi em um negócio de ferros velhos, durante a guerra mundial, que o Procópio Viana passou de modesto vendedor da casa Portela & Gomes a honrado capitalista da nossa praça. Com a bolsa repleta de amostras de arroz, de feijão, de milho, de farinha, anda acima e abaixo a vender nos retalhistas, quando um deles o incumbiu de negociar os maquinismos de uma velha fábrica desmantelada. O rapaz ganhou no negócio quinze contos, e não mais saber de outro comércio. E, em breve, comprava até navios velhos, vendendo-os a estrangeiros, conseguindo reunir, com essas transações, os seus quatro milhares de contos.

Rico, pôs-se o Procópio a viajar. E era de regresso desse passeio através dos continentes, que contava, no Fluminense, a um grupo de senhoras, as suas impressões de turista.

— Visitei Paris, Londres, Madri... — dizia ele, com ênfase, sacudindo a perna direita, o charuto ao canto da boca, a mão no bolso da calça. — Fui ao Cairo, a Roma, a Berlim, a Viena...

E após um instante:

— Estive em Tóquio, em Pequim, em Singapura...

A essas palavras, que punham reflexos de admiração e de inveja nos olhos das moças que o ouviam, mlle. Lili Peixoto aparteou, encantada:

— O senhor deve conhecer muito a Geografia... Não é?

— Ah! não, senhora! — interveio, logo, superior, o antigo caixeiro de Portela & Gomes. — A Geografia, eu quase não conheço.

E atirando para o espaço uma baforada do seu charuto cheiroso:

— Eu passei por lá de noite...

(Rodolphe Bringher)

Se havia um homem que amasse a tranqüilidade, era esse o bom e honrado sr. Bougy. Mas o sr. Bougy tinha uma mulher, uma filha, um filho, um cachorro e um papagaio; e o seu papagaio gritava, seu cachorro latia, seu filho soprava uma gaita, sua filha tocava violão e sua mulher tocava piano. Por tudo isso, o sr. Bougy, que amava a tranqüilidade, não vivia tranqüilo.

Certa noite, tudo dormia na casa do sr. Bougy. O papagaio estava calado. O cão repousava em silêncio. O filho cochilava. A filha sonhava. A mulher roncava, mas docemente.

De repente, ouviu-se um rumor inquietante, no andar térreo. De um pulo, o sr. Bougy se pôs de pé, um revólver na mão. Na sala de jantar, gritou:

— Mãos no ar!

Dois ladrões estavam ali, e puseram, logo, a seus pés, todos os despojos que já haviam arrumado. Feito isso, levantaram as mãos.

— Que tem nesse embrulho? — indagou o sr. Bougy.

— É o cachorro, que nós estrangulamos.

— E no outro?

— O papagaio, a que torcemos o pescoço.

— E no outro?

— Uma gaita e um violão.

— É tudo?

— É tudo.

— Muito bem, — concluiu o sr. Bougy, — levem tudo... Eu dou tudo isso a vocês, mas com uma condição.

— ?...

— Levem também o piano!

O sr. Gaudêncio Guimarães de Oliveira Filho fora, sempre, um homem intransigente em negócios de honra. Antigo chefe eleitoral no Estado do Rio, mudara-se para esta capital, com a esposa e uma filha pequenina, além de suportar o ostracismo. E aqui ia vivendo à custa da caixa do partido, e de outros rendimentos eventuais, de origem mais ou menos honesta.

Certo dia, porém, o sr. Gaudêncio explodiu, furioso. Tinha ele entrado da rua, quando encontrou na sala de visitas, estendido no sofá, um vestido de seda branca, bordado de azul, com a etiqueta de uma grande casa de modas da Avenida.

— Quanto custou este vestido, Luíza?

— Oitocentos mil réis, — informou a moça, chegando-se, os olhos baixos.

— É teu?

— É sim, — confessou a pobre, no mesmo tom.

A essa informação, o antigo chefe eleitoral sentiu uma onda de sangue subir-lhe ao rosto. E foi vermelho, apoplético, que estrugiu, dentes cerrados:

— Então tu tens coragem de trair-me por causa de um vestido?...

— Eu não, Gaudêncio! — gemeu a infeliz, insultada.

E justificando-se:

— Ele deu, também, o chapéu...

Quando o coronel Praxedes Gama teve notícia de que a filha havia abandonado o marido para ir viver com um capitalista, ficou furioso. Era o primeiro punhado de lama que tombava sobre a família.

— Vou ao Rio, e mato-a! — exclamava o honrado fazendeiro, a andar de um lado para outro do alpendre da fazenda, cofiando a barba venerável.

Coração de mãe, dona Miquelina tranqüilizava-o. Quem sabia se aquilo não seria a felicidade da menina? Tapassem, os dois, os ouvidos, e dessem tempo ao tempo. E o tempo foi, realmente, generoso, porque, ao visitar a filha, meses depois, e ao ser apresentado ao novo genro, o coronel ficou tão satisfeito com o luxo, a beleza, o bem-estar da sua Luizinha, que não lhe tocou, sequer, naquela mudança de estado.

Meses passados, voltou, e encontrou, já, outro genro.

— Meu marido, — apresentou a moça. E para o novo esposo, indicando o ancião:

— Meu pai.

Essa nova modificação na vida da filha feriu fundo o coração do velho, o qual, ao tê-la só, inquiriu, severo:

— Que é isso, então? Que vida é esta que levas? Tu não eras, acaso, uma mulher forte?

— Sou, papai; sou forte! — confirmou a moça.

E abraçando o velho, garota:

— Papai já viu "forte" que não mude de guarnição?

(Theodore de Bamville)

Nua como uma comédia da Escola do Bom Senso, mas, sem nenhuma comparação possível, infinitamente mais bela, Jacinta Margarida, os fulvos cabelos desatados, está deitada na sua vasta banheira de pórfiro vermelho, de bordas largas, que pertenceu, diz-se, à desventurada Popéa, e que seu amigo, o conde René de Leufroi, lhe trouxe de Capri, onde a encontrou entre os vinhedos. A linda rapariga brinca numa água transparente e límpida, — pois, em Paris, com muito dinheiro, se encontra até água pura! — e saboreia deliciadamente a frescura tépida, que lhe penetra por todos os poros da pele, admirando a onda suave que a embala, e que a envolve como um véu.

Mas tudo isto é um dado por um tomado; pois a água admira mais ainda o jovem corpo sem mácula que a ela se entrega, e é com amor que lhe acaricia o pescoço flexível, os braços heróicos, o colo níveo, os seios de botões cor de rosa, o ventre polido e direito como o de uma virgem, o torso altivo, as coxas, as pernas de caçadora, os pés de unhas transparentes. E quando a loura Jacinta se levanta a meio e quer chamar Marieta para a tirar do banho, a água freme como se lhe tivessem mergulhado um ferro candente, e, num marulho de tristeza e de saudade, murmura, indistintamente, com uma voz que é um soluço:

— Ainda não, Jacinta!...

A roda não podia ser mais encantadora, mais fina, mais distinta, nem a palestra mais agradável, mais alta, mais sutil. Conversava-se sobre estética feminina, vindo à bulha uma ilustre senhora, figura mundana de alto destaque, mas em quem o "decolletée" denuncia um colo desproporcionado, posto, com as modas atuais, em inteira liberdade.

— A Lúcia — explicou mme. Vieira do Prado — é um caso curioso, nesse gênero.

E contou:

— Imaginem vocês que ela, um dia, foi à minha casa, pedir o meu conselho, sobre o suicídio. Como o seu caso só pudesse ser liquidado pela morte, recomendei-lhe o veneno. Ela recusou. Lembrei-lhe o punhal. Não quis. Falei-lhe do tiro, receitando-lhe uma bala na cabeça. Achou que ficaria desfigurada, e impugnou a idéia. Afinal, ficou resolvido um tiro no coração. Ela faria a pontaria no lado esquerdo do peito, ficando combinado que, para que a bala atingisse, certeira, o órgão da vida, ela encostasse o cano do revólver no bico do seio. Ela fez isso, e puxou o gatilho.

— E não acertou no coração? — indagou alguém, com vivacidade.

Mme. Vieira do Prado sorriu:

— Qual nada!

E com gravidade, ao ouvido de cada um:

— A bala pegou... no joelho!

Cachimbo no queixo forte, carão vermelho e queimado de sol, pequenos olhos muito azuis, trajando um terno de casimira cinzenta que parecia feito para o homem mais gordo da Inglaterra, Patrick Churchill enfiou, naquela tarde, pelo corredor da conhecida casa de encontros galantes, à Rua Riachuelo. Os seus sapatões 44, grandes como couraçados da real esquadra do Atlântico, abalaram o prédio todo, fazendo correr à porta do meio, enxugando as mãos no seu avental doméstico, a velha Guilhermina, rotunda e generosa proprietária daquele antro de amor.

— Ahn! Faça favor de entrar! — pediu a velha, num sorriso, reconhecendo naquele desconhecido um possível admirador das suas constituintes profissionais.

Chapéu de massa à cabeça, fumegando como um navio que queimasse carvão nacional, Patrick Churchill estacou na sala de jantar, olhando os móveis familiares: a mesa, as cadeiras, e, no armário fechado, os licores de cinco mil réis o cálice, para exploração oportuna dos freqüentadores da casa.

— Sente-se; faz favor! Pediu a Guilhermina, solícita.

— Prricada, senhorra! — fez Patrick.

— Vem ver as meninas... Já sei... Prefere uma pequena, loura, novinha... um "bijou"... não é?

— Nô, — respondeu, seco, o inglês; — mim já esteve pequena lourra; non gostarr.

— Quer, então, uma rapariga forte, grande, morena?

— Nô; mim já esteve raparriga morrena; non gostarr.

— Prefere uma mulata, artigo nacional?

— Mim já esteve mulata; non gostarr.

— Uma perta?

— Nô; mim já esteve prreta; non gostar.

Diante de tal exigência, a Guilhermina recolheu a sua dentadura postiça ao cofre da boca e, com a dentadura, o sorriso amável com que recolhera o recém-chegado.

— Nesse caso, que é que o senhor deseja? — inquiriu, afinal, a megera.

— Mim querr rapaz nova, sympathica, bonitinha...

— Cachorro!... — fez, entre dentes, a Guilhermina. — Cachorro!...

E resoluta, furiosa, os olhos faiscantes:

— Vou mandar chamar já um guarda civil!

E o ingl6es, com a mesma fleuma:

— Oh, nô; mim já esteve guarrda civil; non gostarr...

Desde a véspera os médicos haviam considerado desesperador o estado de mme. Carvalho Soutello. A moléstia do coração que a perseguia desde menina, tomara proporções graves depois do nascimento do primeiro filho. O aspecto da enferma era bom. Mostrava belas cores, excelente presença de espírito, como se nada tivesse. De vez em quando, porém, vinha a crise, o coração perdia o ritmo, fugia o pulso, e a família se alarmava. E era natural.

— Uma dessas crises — informava o médico, — pode ser fatal. Ela pode morrer.

E era na expectativa da morte que estava toda a família. À tarde o doutor verificara que, mais um ataque daqueles, e seria o último ato do drama. E foi consciente do seu estado, lendo a preocupação, a aflição, o horror do desenlace nos olhos de todos, que Dona Helena pediu:

— Eu quero morrer cristãmente; sabem? Chamem um padre. Desejo confessar-me.

Uma hora depois entrava no quarto da enferma, fisionomia compungida, com os grandes olhos empapuçados, defendidos pelo vidro grosso dos óculos, a suave santidade do cônego Liberato. Ao vê-lo, Dona Helena tivera um estremecimento. Pela primeira vez sentira a gravidade do seu estado. As vestes escuras do sacerdote pareceram-lhe, naquele instante, uma visão, já, da outra vida. Levantou, porém, os braços muito claros, muito torneados, compondo negligentemente os flocos de ouro do cabelo, ensaiando um sorriso de boas vindas.

Antes de iniciar a confissão, verificando que a enferma era um espírito forte, cônego Liberato começou a prepará-la para a morte.

— Deixe aqui na terra, filha, aqui na torpeza do mundo, todos os pensamentos terrenos. Deus a espera, nas alturas, com os divinos braços da sua misericórdia. Prepare-se, pois.

E recordando o seu estado:

— Lembre-se, filha, que está, já, com um pé na terra e outro no céu!

A essas palavras, a enferma sorriu. E foi com aquele mesmo sorriso que o acompanhara toda a vida, que pediu:

— Então, senhor cônego, faça-me um favor.

E brejeira:

— Não olhe para cima... Sim?

Abraão Machalon, filho de Samuel Machalon, era um tipo legítimo da sua raça. O povo de Israel jamais tivera varão mais apegado às tradições; e foi por isso, talvez, que Jeová, na sua alta sabedoria, que lhe deu por esposa a Raquel, filha mais velha de Jacó Benoliel.

No dia da união, após a solenidade, resolveu o casal Machalon festejar esse acontecimento indo ao Municipal, onde se realizava, naquela noite, um espetáculo da Companhia Lírica.

Na bilheteria, Abraão indagou:

— Quanto custa uma cadeira, cavalheiro?

— Vinte mil réis, em baixo, na platéia, — informou, seco, o bilheteiro.

Abraão pensou um instante, e insistiu:

— Cada cadeira dá para duas pessoas?

— Não, senhor; cada pessoa ocupa uma cadeira.

— E não há lugares mais baratos?

— Há, como não? Nas galerias, lá em cima. Cada galeria custa cinco mil réis.

Abraão meditou um instante, lembrando-se que não se casaria duas vezes, e que poderia, perfeitamente, fazer aquela loucura, gastando dez mil réis. Comprou, assim, duas galerias, e, meia hora depois, estava em cima, no "paraíso" do teatro, aplaudindo, ao lado de Raquel, a voz poderosa do tenor que cantava a "Tosca".

Pouco a pouco, foi o honrado descendente dos patriarcas tomando gosto pelo drama cantado. Aplaudia com prazer, com alma, com entusiasmo. E na sua exaltação, dobrava-se todo para a frente, em termo de virar pelo parapeito, e tombar lá em baixo, na platéia, espatifando-se no chão.

Olhos pregados na cena, Raquel sorria, beatificante. E sorria, deliciada, quando o marido, a aplaudir Cavaradossi no fim do segundo ato, se entusiasmou tanto, que pendeu para a frente, escapulindo da galeria, para rebentar o crânio lá embaixo, nas cadeiras. Por uma felicidade, porém, enganchou os pés nos frisos de um camarote de segunda ordem, ficando ali pendurado, a cabeça para baixo, o paletó cobrindo o pescoço.

O rebuliço no teatro foi enorme. Correrias, atropelos, gritos, palavras de terror. E no meio de tudo isso, só se ouvia a voz de Raquel, debruçada no parapeito:

— Abraão?... Abraão?... Não caias, Abraão!

E para animá-lo a salvar-se:

— Lá em baixo custa vinte mil réis, Abraão!

(Sobre um conto de Lafontaine)

O Convento da Graça, erguido naquele outeiro florido, servia principalmente para abrigar mocinhas que, desde criança, haviam mostrado vocação para a vida religiosa. Era, por isso, um jardim de açucenas, um recanto de pureza, um ninho de candura, em que não penetrara, jamais, a idéia do pecado. E foi quando lhe foi bater à porta, o rosto pálido, os olhos macerados, aquela maravilhosa figura de mulher, confessando à superiora a sua situação:

— Eu fui, madre, uma grande pecadora. A minha mocidade foi consumida toda no prazer e no pecado. Agora, porém, reconheci o meu erro, e quero tornar, definitivamente, ao caminho da perfeição, através da penitência!

Comovida por tanta sinceridade, a madre-superiora abriu-lhe os braços e a porta do casarão votado a Deus, e nunca se viu, no convento, noviça, ou freira, que mais se aprofundasse na oração. Dia e noite, passava-os irmã Tereza de joelhos, com o rosto mergulhado no breviário; e de tal modo que a superiora, edificada com tamanha santidade, apontou-a, um dia, como exemplo, às meninas:

— Mirai-vos naquele espelho, minhas filhas; evitai o mundo, e vivei na meditação, como irmã Tereza! Imitai-a, minhas filhas!

— Ah, madre, isso é impossível! — retrucaram, logo, duas ou três noviças. — Nós só poderemos chegar àquela perfeição, depois.

E de olhos baixos, as mãos cruzadas no peito:

— Nós só poderemos ser o que ela é, madre, depois de termos sido o que ela foi...

Um dos maiores orgulhos do Antônio Viana de Meireles era aquela barba negra, cerrada, que ele trazia inteira, como o dr. Abreu Fialho, o dr. Estelita Lins ou o dr. Arrojado Lisboa. No ministério, onde era 2º escriturário, puseram-lhe o apelido de Frei Antônio. Ele achava, porém, que aquela moldura lhe ficava bem ao carão moreno, de olhos pardos e nariz aquilino, e atribuía tudo aquilo à mísera inveja dos rapazolas imberbes.

O que contrariava o Meireles era, entretanto, a solidariedade da esposa, a graciosa Dona Marina, com aqueles pelintras da Secretaria. Não que a jovem senhora lho dissesse, zombando dele; mas pela indiferença com que o abraçava, e, sobretudo, pela repugnância com que afastava o rosto claro toda vez que ele se aproximava para beijá-la.

Magoado com semelhante ojeriza, resolveu o Viana de Meireles fazer, um dia, uma surpresa à esposa: foi a um barbeiro, raspou a cara, e, leve, o rosto fresco, tocou-se para casa, antegozando o prazer que ia dar, naquela tarde, à sua mulherzinha.

Ao bater à porta, a moça correu a abrir, saltando-lhe ao pescoço, com beijos famintos, gulosos, desesperados.

— Está satisfeita, minha filhinha, por ver-me assim... Não é? Gemeu o rapaz, comovido de gratidão,

A essas palavras os beijos cessaram como por encanto. Pálida, olhos arregalados, Dona Marina recuou dois passos.

— Antônio, és tu? — gritou, horrorizada.

E olhando-o, estupidificada, limpando a boca, num horrível desapontamento:

— Eu nem te reconheci!...

Após uma discussão na Associação de Imprensa, durante a qual se haviam atirado insultos pesados, tinham os dois jornalistas resolvido bater-se em duelo. Um e outro eram, porém, avessos a essas manifestações militares, de modo que foi como bois arrastados para o matadouro, que seguiam naquela manhã friorenta de maio, para o chamado campo da honra.

Escolhido o local, a Quinta da Boa Vista, próximo ao lago onde as ninféias desabrochavam, as testemunhas puseram os dois contendores, a pistola na mão, um em frente ao outro, a dez passos de distância: Martinho Lopes, do lado dos bambus, e Feliciano Gadelha, d lado da água.

Chegara o momento solene. O braço estendido, escutaram, ambos, a voz de comando:

— Um!... Dois...

Nesse ponto, antes da ordem final, o braço do Feliciano caiu.

— Protesto! — bradou o desgraçado, abandonando a arma e deixando a posição. — A situação é muito desigual.

E, pálido, as mãos trêmulas, indicando o adversário:

— Ele está com muito menos medo do que eu!

Rostinho brejeiro coroado por uma chapéu pequenino, em que se casam com arte minúsculas flores de seda, a graciosa Ginette desce, elegantemente metida no seu levíssimo vestido de verão, aquela pequena ladeira que vai dar, em baixo, na Avenida Beira-Mar. Pequenos e alígeros, os seus sapatinhos estalam no paralelepípedo, como aves que bicassem a pedra. É noite, as estrelas brilham nas alturas, e Ginette convida, de passagem, a cada transeunte que encontra:

— "Viens, mon cheri!

Ö transeunte não lhe dá atenção, mas isso não a ofende. Se ele, depois, voltar, será a mesma, como seria para outro. A sua profissão está abaixo das injúrias, que ela recebe, sempre, sem protesto. Em baixo, na praia, junto a um poste de parada, um cavalheiro espera o bonde.

Sorriso provocante na boquinha avivada pelo "rouge" recente a francesinha convida:

— "Um baiser"... Vinte mil réis... "Viens"...

Ante essa insistência, o cavalheiro levanta a bengala em que se apoia, batendo, forte, na pena esquerda, até acima do joelho. Um ruído seco, abafado pela casimira da calça, faz sentir à rapariga que a perna não tem carne, nem osso.

— "Une jambe de bois?..." "Vous"? — fez a francesinha, admirada.

Ginette é, porém, generosa. Generosa ou interesseira; quem sabe lá?... E é por isso que, com uma graça toda sua, toda parisiense, faz um gestosinho de cabeça, no rumo da casa, lá em cima na ladeira:

— Dez mil réis... "Viens"?

Catulie Mendes

A honesta avozinha começou primeiro por dar um par de bofetadas na pequena desavergonhada, e, depois, enquanto a rapariga chorava a bom chorar; vermelha como uma papoula, fez-lhe este discurso:

— É, pois, verdade, teres um amante? E confessas, ousas confessar? Um amante! E só com dezesseis anos! Com os olhos baixos, o arzinho modesto, parece que não quebras um prato, e chegaste já a esse ponto no deboche e no cinismo! Quem te visse julgaria só em bonecas ou num bebê japonês e, afinal, a boneca que a menina tinha na cabeça é um homem! Que vergonha! É para uma pessoa fugir, meter-se pelo chão a baixo! Como? Foi essa a educação que recebeste? Não tendo na família senão bons e virtuosos exemplos, como pudeste cometer uma falta tão grande? É preciso, palavra de honra, que tivesses o diabo no corpo!

Mas o que mais exasperava a avó era ter a Luizinha conseguido enganá-la, apesar da vigilância que sobre ela tinha exercido.

— Porque, enfim, posso dize-lo afoitamente, eu guardava-te noite e dia! Há três anos que estás na minha companhia, e nunca saíste sozinha senão duas vezes: a primeira, há oito dias, durante cinco minutos para comprar linha e agulhas, e a segunda anteontem, durante uma hora, para ires a Batignolles ver a tua tia que está doente. E uma hora só foi bastante para te aniquilares! As mais doidas, esperam que lhes façam a corte, resistem um mês, seis meses, mesmo um ano, mas tu, não, tu estavas muito apressada! Ah! brejeira! Numa hora, tu...

Mas a rapariga, que, mesmo chorando, era bonita, interrompeu:

— Não avozinha, não; estás enganada; não foi dessa vez.

E desatando em choro:

— Foi da primeira...

Bertoldo Catanhede da Silva era célebre nos anais da malandragem nacional quando se encontrou, naquela tarde, sob o toldo da Galeria Cruzeiro, com o Atanásio Coutinho, que conhecera meses antes na Casa de Correção. O primeiro estava tão solene, tão grave, tão correto no seu terno de casimira marrom, que o outro quase não o conhece.

— Que prosperidade, gente! Quase que eu não falo por não saber quem era!

Bertoldo explicou ao antigo companheiro de prisão as vantagens da sua nova profissão. Tinha-se regenerado, esquecendo o passado de falcatruas, de roubos, de maroteiras. Agora, era um homem de bem, que conquistava honestamente o seu pão.

— E você, ao que parece, tem se dado bem... objetou o Atanásio. — Tem boa roupa, relógio, corrente, chapéu novo, abotoadura nova... Está, enfim, um pelintra!

Examinou-o de novo, e tornou:

— E esse relógio, onde você o adquiriu?

— Este? Na Torre de Ouro, na Avenida.

— Por quanto?

O "regenerado" coçou a cabeça, atrapalhado.

— O preço, filho, não sei... — confessou. — À hora em que passei por lá, para adquiri-lo, não havia nenhum caixeiro no balcão.

E sincero, cortando a conversa:

— Eram duas e meia da madrugada... Estavam todos dormindo!...

Quando o dr. Abdenago Borges tomou aposento, para moradia, na "Pensão Paraibana, à rua Corrêa Dutra, o que mais o impressionou não foi o panorama que se descortinava da janela do quarto, dominando a baía, nem o preço mensal, que era de seiscentos réis: foi o palmo de cara, com os seis de corpo, da copeira, o Josefina, mulatinha de dezoito anos, cuja plástica, disfarçada pelo avental e pelo vestido grosseiro, era facilmente adivinhada pelo seu olhar de entendido. Paramentada com elegância, a pequena seria, talvez, a mais linda mulher da cidade. Era, pois, com alegrai íntima, que [se] ele felicitava a si mesmo por ter descoberto aquela pérola, em ostra tão escondida.

Os primeiros dias passados no novo pouso, consumiu-os o jovem homem de ciência em aproximar-se da rapariga. E tanto fez, tanto procurou, que, uma tarde, ao cruzar com ela em um dos corredores do segundo andar, pegou-lhe nos pulsos, ameaçando-a, nervoso:

— Hoje, às onze e meia, vou hipnotizá-la. Hei de fazer com que você, dormindo, vá ter ao meu quarto; sabe?

Aquela ameaça não era, entretanto, uma pilhéria. Entendido em hipnotismo, era pensamento do Abdenago atrair à sua cova de lobo, à noite, aquela ovelha desconfiada. E à hora marcada, com a pensão em silêncio, lá estava ele com a atenção concentrada, os olhos na porta, chamando hipnoticamente, a mísera Josefina.

Ao fim de um quarto de hora, ouviram-se passos miúdos no corredor. Abdenago sorriu, feliz, com a vitória da sua ciência. Era a Josefina, com certeza, que vinha, sonâmbula, dominada, ao seu encontro.

A porta, encostada, abriu-se.

— Josefina! — gemeu o médico, os olhos esbugalhados, os braços estendidos, as mãos abertas, como os pés de uma galinha morta lançada a uma lata de lixo.

A mulatinha olhou-o com espanto.

— "Tá"doido, moço!? — fez, franzindo a testa.

E desatando a rir, dengosa:

— Minha Nossa Senhora! Era "perciso", agora, tanta coisa, pr'a gente vir aqui?...

No gracioso "boudoir" de Júlia Berredo, estirada cada uma no se divã, a dona daquele ninho de amor conversava com a sua amiga mais íntima, a encantadora Maria Irene, quando aquela, a propósito de um "potin" malicioso, indagou:

— Não conheces a história de Ciro?

— O Ciro Fernandes?

— Não, filha; Ciro, o rei dos persas.

E começou:

— Quando Ciro morreu, os seus súditos ergueram-lhe um túmulo, no interior do qual cabia apenas um visitante. Sendo mister, porém, que o corpo do monarca não ficasse, jamais, sozinho, resolveram os sacerdotes que, toda a vez que saísse de lá um visitante, entrasse, logo, outro. E assim aconteceu, dia e noite, durante séculos.

Olhos interrogativos, Maria Irene fitava a amiga, sem compreender bem. E olhava— ainda, quando Júlia, num sorriso, levantou a ponta do mistério:

— Pois, menina, há mulheres assim...

E numa gargalhada:

— Sai um, entra outro!

Era tradicional na família Torres Figueira o culto do milagroso São Sebastião. A avó, a mãe, as tias de Dona Bebita haviam alimentado, sempre, essa devoção. E era por isso que a jovem senhora, ao educar a sua Matildinnha, não a deixava dormir sem, primeiro, encomendar-se ao virtuoso mártir de Narbona.

— Encomenda-te sempre a ele, minha filhinha, que ele não te abandonará! — aconselhava.

E à noite, antes de adormecer, juntava-lhe as mãozinhas pequeninas, ensinando-lhe a dizer:

— Ah, meu milagroso São Sebastião, vinde em meu socorro, guardai o meu sono, contra a fúria do inimigo!

Certo dia, porém, foi a Matildinha a uma igreja onde havia uma imagem do santo, e voltou impressionadíssima. À noite, a hora da reza, a mãe proferiu, para que ela repetisse:

— Ah, meu milagroso São Sebastião, vinde em meu socorro.

— Não, mamãe, — protestou a pirralha, desunindo as mãozinhas, os olhos nos olhos maternos, — isso eu não digo mais, não; não vale a pena.

E ante o espanto da linda senhora:

— Ele está amarrado lá na igreja, mamãe; como é que ele há de vir?

(Max Viterbo)

O Conde Barnabé de Maistre era um dos apaixonados de mme. Block, a formosa esposa do conhecido banqueiro judeu. O conde havia lhe permitido um lindo "manteau" de dez contos de réis, e procurava o melhor meio de entregar-lho sem que o marido suspeitasse.

Pouco afeito a semelhante situação, o velho fidalgo estava em dificuldades. Que diria Block ao ver a esposa com aquela peça de vestuário que ele não comprara nem conhecia? Afinal, o conde encontrou um meio. Fazia parte do mesmo clube que Block, e, um dia, apareceu-lhe com o "manteau".

— Tua mulher, Block, possuía um bilhete de rifa, que saiu premiado com este "manteau". Faze-me o favor de entregar-lho, sim?

— Com muito prazer, meu velho, — aquiesceu o banqueiro, sem maiores explicações.

No dia seguinte, ao voltar ao clube, Block chamou à parte o conde...

— Eu vou pedir-te um favor, sabes?

— Que é?

— Não digas à minha mulher que ela tirou o "manteau".

— ?...

— Ela não precisa daquilo; sabe? Então, eu...

— Tu...

— Eu o ofereci à minha "pequena", uma inglesinha, que ficou contentíssima.

O capitão Vicente Bandeira estava já no segundo sono, quando, pelas três horas da madrugada, percebeu barulho na sala de jantar. Ouvido alerta, sentiu um estalar de gaveta, e outros ruídos que lhe denunciavam a presença de estranhos, no andar térreo da casa.

— Lulu? — chamou, sacudindo brandamente a mulher. — Lulu?... Lulu?...

— Hein?... Hein?... Que é?... — fez a boa senhora, despertando.

— Parece que temos gatuno em casa, filha!

Corajoso e decidido, o valente militar engatilhou a pistola, e, de pé ante pé, desceu ao andar térreo. E não se tinham passado quatro minutos quando Dona Lulu conheceu, em cima, pela queda precipitada dos móveis, que o marido havia se atracado com o ladrão.

Confirmada a sua suspeita, desceu. Cabelo alvoroçado, em ceroula, descalço, Vicente Bandeira tinha diante de si, encostado à parede, com as roupas em tiras e o rosto em sangue, um rapazola de uns vinte anos, que tremia, chorando:

— Não me mate, senhor capitão. Eu sou um gatuno honesto! Eu roubo para viver, é certo; mas roubo sem rebaixar-me!

Vicente Bandeira olhava o rapazola, sem compreender. E o desgraçado continuava:

— Eu sou um rapaz de bons costumes, educado com grande carinho. Nunca freqüentei lugares suspeitos!

E as mãos juntas, o rosto em lágrimas, um choro de cortar a alma:

— E a prova, senhor capitão, é que, para roubar, eu só visito casas de família!...

Não obstante as suas barbas hirsutas, e aquele nariz aquilino, que parecia espiar, curioso, para o abismo da boca dissimulada sob os bigodes, Abraão Salazar não era um homem triste. Na Sinagoga, nas reuniões religiosas, era, mesmo, dos menos soturnos, a ponto de ter sido censurado uma vez, com os olhos, pelo rabino Melchisedec.

Foi, por isso, motivo para estranheza o modo porque aquele honrado descendente de Israel entrou, naquela noite, no pequeno prédio da rua da Alfândega, onde se iam erguer novas preces pela felicidade dos judeus espalhados por todo o mundo. E como ninguém tivesse mais intimidades com ele do que o velho Isaac Labbareff, foi a este que coube o direito de aproximar-se de Abraão, para uma pergunta fraternal.

— Estás doente? — indagou, com os olhos muito pequenos, muito vivos, faiscando entre as sobrancelhas revoltas, como dois diamantes escondidos na relva.

— Não. Uma desgraça.

Os olhos de Isaac refulgiram, ainda mais.

— Deixaram de pagar-te algum empréstimo? — indagou?

— Não — informou, seco, Abraão Salazar.

E cerrando o cenho:

— Imagina tu, que, ao entrar em casa, encontrei o Daniel, Daniel Shakaroff, aos abraços com minha mulher!

— E não o mataste? — indagou, recuando, o velho judeu.

— Não. E é isso que me revolta. Eu não podia matá-lo.

— Não podias? — rugiu o ancião.

A Abraão, os punhos contraídos, os dentes cerrados, na raiva de quem se sentiu manietado:

— Não sabes, então, que ele me deve duzentos mil réis?

Aquele pequeno café da rua General Câmara, quase no canto da Primeiro de Março, era, talvez, o mais afreguesado da cidade. A concorrência entre as duas e as quarto, quando os empregados do grande comércio do bairro saem para tomar a sua canequinha, era enorme. As mesas apertavam-se umas de encontro às outras, e tamanha era a falta de espaço e de cadeiras, que o sr. Joaquim, dono do estabelecimento, tomou, um dia, uma resolução inteligente.

— De hoje em diante — disse — o café, a quem o tomar de pé, custará mais barato.

E fazendo o preço:

— A freguês sentado, dois tostões; a freguês em pé, cento e sessenta!

Foi nessa casa afreguesadíssima que o Antônio Dias foi ter, uma tarde, com a garganta ardendo de poeira e o estômago em protestos, com fome. Desempregado há quase um mês, havia devorado, já, todo o pequeno saldo que o patrão lhe entregara. O colarinho sujo, os punhos pegajosos, as botinas sem graxa, a barba de oito dias, a roupa sem escova, diziam o que vinha sendo a sua vida, percorrendo o comércio, à procura de uma colocação.

Antes de entrar no café, o Antônio consultou os recursos: restava-lhe apenas um tostão, um ínfimo níquel de cem mil réis, que se perdia, miúdo, no fundo imenso do bolso, e que ele acariciava de instante a instante, com grandes sustos no coração. Certo de que a moeda estava ali, enfiou pela casa, parou entre as mesas, e, perscrutando o ambiente, procurou, com os olhos, um "garçon".

Um acorreu, solícito:

— Um cafezinho?

— Quanto custa um café? — indagou, tímido, o Antônio.

— Sentado, dois tostões... De pé, cento e sessenta.

O rapaz esfriou. A moeda de cem mil réis suava-lhe na mão suja, mergulhada no bolso. Excitado pelo cheiro do café, o organismo recusava distanciar-se dali, os pés pregados no chão. E foi, então, quando o desgraçado teve uma idéia.

— Mocó, — gemeu, dê-me um por um tostão...

E quase chorando:

— Eu tomo de cócoras!...

A pensão da Henriqueta possuía fama em todo o bairros. Destinada a rapazes do comércio e costureiras desempregadas, particularizava-se pelo relaxamento que ia por tudo, e que os hóspedes atribuíam à dona da casa, a qual não saía o dia inteiro do seu quarto. E como tudo andava desorganizado, o relógio da sala de jantar aderia ao movimento, ou à falta de movimento, parando quando entendia e declarando-se em greve ao menor estremecimento do soalho.

Chamado um dia o relojoeiro para consertar o atrevido, o homem tirou-o do seu gancho, na parede, e colocou-o sobre a mesa de refeições. E mal tomou essa posição, pôs-se o preguiçoso em atividade, marcando, com a maior regularidade, as horas, os minutos e, até, os segundos. Posto, porém, na parede, parou de novo, para tornar a trabalhar assim que o deixaram novamente de vidro para o ar, sobre a tábua da mesa.

Ao ver essa teimosia do relógio, o copeiro da casa, o Romualdo, começou a rir, com todos os dentes.

— Não é nada, não senhora. Eu estou achando graça é desse relógio parecer tanto com a patroa.

E concluindo, a dentadura à mostra:

— Ele só qué trabaiá deitado!

(Jules Moy)

Moisés tem uma linda mulher.

É a opinião de Moisés.

É essa, também, a opinião dos amigos de Moisés.

Rebeca, esposa de Moisés, não é orgulhosa.

Somado tudo, Rebeca não procura senão ver todo o mundo contente, e contenta a todo o mundo. Não sabe recusar nada a ninguém.

Um a um, os amigos de Moisés aproveitam-se dessa circunstância, e fazem a Rebeca uma corte que é levada, sempre, aos derradeiros limites.

Certo dia Rebeca recebe em casa o tenente Bigorneau, afamado pelas suas conquistas mundanas e pela sua bravura. A conversa vai logo às últimas intimidades. No meio da palestra, ouvem-se passos.

— Céus! Meu marido! — exclama Rebeca, que conhece os seus clássicos.

Rebeca esconde rapidamente o tenente Bigorneau, que se deixa conduzir, em um armário da sala.

Moisés aparece, e troveja, exasperado:

— Teu amante está aqui!... Eu sei... Onde está ele?... Vou matá-lo!

Rebeca, com calma, responde:

— Não grites, homem! Se tu sabes que eu tenho um amante, procura-o tu mesmo.

Moisés começa a procurar pelo quarto. Levanta as cortinas. Abre as malas e, até, as gavetas, que não têm mais de trinta e cinco centímetros de comprimento. Após cada pesquisa, exclama:

— Aqui não está!

Enfim, chega diante do armário grande. Abre-o, e vê o tenente Bigorneau em toda a sua estatura. Bigorneau está com cara de poucos amigos. À mão, brilha-lhe a espada, disposto a tudo.

Moisés olha com atenção o oficial, e, em seguida, fechando o armário com violência:

— Aqui, também, não está!

Quando o Pulcherio entrou para o serviço do dr. Borges Bastos, com as funções de "chaffeur" viu, logo, que, mais cedo, ou mais tarde, ficaria comprometido: a Maria Luíza, mulata escura, cria da casa, era uma verdadeira tentação, com aquele corpo coleante e, sobretudo, com aquele colo atrevido, que era um desafio permanente à instintiva brutalidade dos homens.

Maria Luíza sabia o valor desses atributos, e procurava, sempre, pô-los em destaque. E tanto sabia, que, à tarde, antes do doutor voltar para casa, no automóvel, desabotoava o corpilho, atirava-o para o canto, deixando que o busto se manifestasse livre, farto, opulento, balouçando sob a camisinha leve, que tinha, por cima, a blusinha de cassa ordinária.

Tentado por aquele diabrete de chocolate, o Pulchério foi, pouco a pouco, tomando certos atrevimentos. E tais foram estes, que, uma tarde, ao entrar na cozinha, onde o "chaffeur" e a Maria Luíza conversavam debruçados numa janela, mme. Borges não se conteve, gritando:

— "Seu" insolente! Ponha-se já daqui para fora! Já!...

Que teria sido? Que indignidade estava praticando o rapaz, para ser expulso de modo tão peremptório? Ninguém sabe. O que é certo, porém, é que, um mês depois, Maria Luíza recebia uma carta, que dizia assim:

"Minha querida. — Vou embarcar para o norte, como taifeiro de um vapor do Lloyd. A vida do "chaffeur" é mais rendosa, mas me é impossível continuar nela, por tua causa. Pois eu não posso apertar a buzina do carro, Maria Luíza, sem lembrar-me de ti, dos agrados que te fazia, das horas que passávamos juntos. Adeus, até a volta. — Pulchério".

Ao receber essa carta, a cafusa apertou-a de encontro ao coração. E foi ao fazer esse gesto, que ela compreendeu, coitada! O que deveriam ser as saudades do Pulchério, ao apertar, longe dela, a buzina do automóvel.

Era uma figura digna e nobre. Colocada num pedestal, ao lado daquela estátua de bronze que recorda, na praia da Glória, a abertura dos portos nacionais a todos os navios do mundo, não se saberia dizer qual a mais augusta, a mais severa, a mais majestosa. E foi isso, exatamente, o que tentou, nela, o deputado Ramos Videira, ilustre parlamenta oposicionista, cujo verbo descia da tribuna da Câmara como os raios de Jeová do alto do Sinai.

O entendimento para um encontro dos dois foi rodeado do maior sigilo, do maior cuidado, da máxima solenidade. Foi assim como um tratado internacional, para a assinatura do qual reclamam todas as particularidades do protocolo e as habilidades, as mais apuradas, da mais experimentada diplomacia.

Pela combinação, a virtuosa senhora saltaria na praia de Botafogo, atrás do Mourisco, às sete da noite, hora em que o ilustre deputado já estaria à sua espera, com um "landaulet" de cortinas descidas. E o ponteiro estava em cima das sete horas, beliscando, como um bico de pássaro, aquele número, quando aquele maravilhoso vulto feminino, transpirando nobreza e dignidade, se aproximou do carro que a aguardava.

Chapéu na unha, o glorioso homem público precipitou-se ao seu encontro, beijando-lhe a mão seguia como um lírio.

— A senhora está nervosa, agitada... Não está?

— É natural; o senhor não acha? É a primeira vez que cometo, na minha vida, uma loucura destas...

Já no carro, o brilhante orador elogiou, de novo:

— A senhora é de uma pontualidade absoluta; sabe? Eram sete horas, em ponto, quando chegou.

— Ah, eu sou assim! — fez a dama com desvanecimento. — Eu sou assim!

E cruzando a perna, com desembaraço:

— O senhor sabe que eu nunca deixei um homem esperando muito tempo por mim?

Embora não fosse tão bonita de rosto, Anália Thompson possuía uma infinidade de admiradores, a ponto de ter, sempre, nas festas, um séquito, como o das rainhas.

— Viúva com dinheiro é isso mesmo! — diziam as despeitadas.

E acentuavam:

— Beleza é, mesmo, coisa que ela não tem!

Realmente, a conhecida senhora não constituía uma cara fora do comum. Fizessem, porém, no Rio, um concurso de plástica feminina, e ninguém arrebataria o prêmio às mãos daquela malsinada criatura.

Da cintura para baixo, principalmente, a sua elegância era irrepreensível. O seu andar, sem exagero, sem requebros, fazia lembrar entidades de outras épocas, tipos clássicos de formosura feminina, criaturas que fizeram, de passagem, a glória fugitiva do planeta. E Dona Anália sabia tanto o que valia, e onde estavam os seus encantos, que, quando queria impressionar alguém, começava, logo, por dar-lhe as costas.

Não obstante isso, a inveja teimava em afirmar:

— É o dinheiro! Aqueles rapazes todos que a cortejam são arrastados pelo dinheiro dela!

Certo dia, em uma festa no palacete dos Mendes Barros, estava a moça num banco de jardim, sentada, quando dela se aproximou, bonito e grosseiro, na sua estupidez dourada, o Flávio Loureiro, curioso tipo de conquistador sem educação, e foi, logo, dizendo:

— É verdade, dona Anália: é certo, mesmo, que a senhora tem fortuna?

— Eu? Tenho alguma... — explicou a viúva, resolvida a divertir-se com aquele cavalo de pau.

— E está em prédios, em apólices, em empresas comerciais... em suma; em que está empregada? — insistiu o bruto.

— Minha fortuna? — tornou a moça.

E olhando, de esguelha, para as tábuas em que se sentava:

— Está no Banco...

(Adaptação de Paul Perret)

No Leblon-Palace, o "cabaret" da moda, João Polydoro, — o pintor a quem a fortuna ainda não havia sorrido, mas que ganhava largamente com os seus pequenos quadros galantes, — não cessava de fazer a corte à famosa mundana Etelvina Bournet.

Etelvina era uma rapariga de amor, a quem vinte anos de exercício contínuo da profissão tinham dado o tato exato do negócio. Por isso, quando João Polydoro lhe falou em passarem juntos uma tarde, estipulou, logo:

— Quinhentos mil réis!

— Quinhentos mil réis!... Seria com prazer, — replicou o rapaz. — Falta-me, porém, no momento, uma cousa: o dinheiro... Eu terei crédito?

— Eu simpatizo com você, filho, — concordou a rapariga. — Você assina uma promissória, e está tudo arranjado.

João tirou do bolso uma caneta, e, sobre a mesa em que conversavam, escreveu:

"A 30 de novembro de 1923 pagarei à vista desta a mle. Etelvina Bournet a quantia de quinhentos mil réis, valor recebido em mercadorias".

Selou, datou, assinou, entregando o documento à Etelvina.

— Mercadorias?... — estranhou a rapariga.

— Queres que, em vez de "em mercadorias", eu escreva "em espécie"? A palavra não tem importância. Pensemos na hora presente, e amemo-nos!

Amaram, amaram e, a 30 de novembro, às 11 horas precisas, Etelvina Bournet batia à porta do quarto do Rio-Hotel em que João Polydoro habitava por esse tempo.

— Bom dia; eu venho receber a promissória... — disse.

O artista tomou o papel, examinou-o, e, fazendo uma cara de contrariedade:

— É minha a letra, é. Eu reconheço a dívida, mas não pago. Só com audiência da companhia de Seguros.

E fechando a porta:

— As mercadorias estavam avariadas...

Beiço pendente sobe a papada, papada pendente sobre o peitilho da camisa gomada, o comendador Salustiano tivera a felicidade de casar-se com uma senhora rica, viúva de dois maridos, e herdeira de três, a qual, para maior comodidade, lhe havia levado, já, dois filhos para o matrimônio. Derreado em uma cadeira de braços, nunca fizera nada, na vida. Limitava-se a comer o que lhe colocavam diante da boca, e, para vestir-se, era necessário que lhe metessem os botões na camisa, a gravata no colarinho, e lhe enfiassem, mesmo, as botinas nos pés.

Precisando de marido unicamente para lhe dar o nome, espécie de guarda-chuva com que afrontava os temporais, Dona Josefina pouco se afligia com aquele porco. Um dia, porém, irritou-se: ao lado da cadeira em que ele passava o dia, um lago de saliva sujava o tapete.

— Oh, Salustiano! — fez a moça. — Então, isso se faz? A escarradeira não estava alí?

— Estava; mas a dois metros de distância.

— Por que não chamou o criado, para aproximá-la?

— Ora... Só o trabalho de gritar!...

— Pois, olhe: eu vou mandar colocar aí, junto de você, uma campainha elétrica... Ouviu?

No dia seguinte, aparecia, realmente, o eletricista. Colocados os fios, os tímpanos, enfim, pronto o trabalho, explicou ele ao comendador, que o olhava, estúpido, com os seus olhos de suíno:

— Quando o senhor quiser chamar o criado, é só apertar aqui...

— Apertar? — fez Salustiano.

E as mãos caídas, o beiço mole:

— Não tem alguma coisa que toque, sem dar a gente o trabalho de apertar?

Foi uma infelicidade para a família inteira, aquele infortúnio que assaltou o Praxedes, aos dezoito anos de idade; uma nuvem foi, aos poucos, lhe descendo sobre os olhos, até que o pobre rapaz se viu, na flor da vida completamente cego.

Recolhido a uma casa de Saúde, foi-lhe fácil arranjar um amigo. A infelicidade é o verdadeiro esperanto da humanidade, e foi ela quem, aproximou de Praxedes o Antônio de Baros, que errava pelos salões do hospital, completamente paralítico, e apenas com o uso da língua, sobre uma pequena cadeira de rodas.

Tornados íntimos, o Praxedes, com o seu bom humor habitual, fazia o possível para distrair o companheiro. E um dia, propôs:

— Sabe de uma coisa, meu velho? Vamos casar?

— Com quem?

— Ora, com quem?... Com uma mulher, está bem visto.

— Com uma só... Então?

E alegre, com os seus olhos apagados:

— Você olha... e eu abraço!

Anos depois, ficaram bons, os dois. E fizeram o negócio.

O advogado brasileiro Joaquim Taludo de Menezes havia se notabilizado, no Rio, pelo seus famosos expedientes de rábula. Os recursos de que lançava mão eram de tal ordem, que nunca perdera, praticamente, uma questão: ou ganhava-a legalmente, ou, se perdia, irritava de tal modo o advogado da outra parte, que este acabava por abandonar o pleito, para não se medir com semelhante adversário.

Forte, musculoso, bigode arrepiado, havia nele, ao mesmo tempo, o advogado e o capanga. Impetuoso, não media palavras; e onde não chegava a convicção, chegava o braço, de modo a ser necessário, de vez em quando, a intervenção dos guardas do foro para subjugar a sua eloqüência.

Enriquecido por esse processo, resolveu Taludo de Menezes fazer uma viagem à Europa. Não falando nem compreendendo o francês, a Europa, na sua Geografia, se limitava a Portugal. Em Lisboa, viu, porém, que a língua espanhola pouco diferia da portuguesa, e atravessou a fronteira, rumo de Madri.

Por essa ocasião, agitava-se o país todo com a primeira campanha dos mouros contra o domínio espanhol, em Marrocos. Na imprensa, nos "meetings", no parlamento, não se discutia outra coisa. Soprava na península um vento de indignação, que se detinha, apenas, amainando as velas dos galeões do entusiasmo, na fronteira de Portugal. O próprio monarca, vibrando com o seu povo, dirigiu ao parlamento uma "fala do trono", em que dizia, ao estilo protocolar: "Querem tirar ao Vosso Rei aquilo que ele herdou dos seus maiores. Melila, jóia da minha coroa, está ameaçada. Cabe-vos defender o patrimônio do Vosso Soberano, pondo-o a salvo de qualquer surpresa dos meus inimigos".

Essa proclamação impressionou Taludo de Menezes. Fosse ele advogado em Espanha, e não tomariam ao seu augusto monarca a "jóia da coroa".

— Mas eu vou intervir! — resolveu, de repente, dando um murro na mesa do restaurante onde fazia refeições. — Vou procurar o Rei, e ensinar-lhe um meio de não perder Melila!

Dois dias depois, era, realmente, o advogado brasileiro recebido pelo soberano.

— Majestade — declarou, solene, após uma infinidade de "gaffes". — Eu tenho um processo para Vossa Majestade não ficar sem a "jóia da Coroa". Posso dizer!

— Pois, não, — aquiesceu o monarca.

Taludo de Menezes subiu um degrau do trono, olhou em torno, e, chegando a boca ao ouvido do Rei, segredou:

— Ponha-a no nome da sua esposa!...

E esfregou as mãos, contente.

(Sobre um conto de Jules Moy)

O céu estava todo enfeitado de estrelas, que os anjos iam acendendo, quando São Pedro, arrastando a sua túnica branca pelo mármore leve das nuvens, foi avisar aos três hóspedes do Paraíso que o Senhor, o Senhor Deus, lhes queria falar. O negócio era urgente, e, momentos depois, estavam os três naquela sala imensa, em que o Criador de todas as coisas costuma dar, nos dias de festa, as suas audiências. O rosto grave, a grande barba de seda branca derramada pelo peito, com uma catarata espumejante que se atirasse de um rochedo, o Senhor explicou-lhes o motivo daquela convocação. Eles pertenciam cada um a uma religião diferente — um era católico, outro protestante, outro judeu — e Ele, senhor do mundo e da vida, ia-lhes fazer a graça de pô-los de novo na terra, com a circunstância, ainda, de lhes conceder o que mais desejassem, para realização da sua felicidade.

— Eu, Senhor — disse, logo, o católico, — eu quero possuir todos os diamantes do mundo!

— O meu desejo, Senhor, é ter tudo, o ouro da terra! — secundou o protestante.

Encolhido atrás dos companheiros, o nariz curvo, os olhos faiscantes e miúdos, a barba negra espichada no queixo magro, o judeu não dizia nada.

— E tu, Moisés? — interpelou Jeová.

— eu, Senhor? — fez Moisés, com humildade. — Eu vos peço apenas, Senhor, que me dês, lá, embaixo...

E ao ouvido de Jeová piscando o olho:

— O endereço dos dois...

Aquela hora da noite, a praça Mauá dormia o sono profundo das pedras, embalada, apenas, pelo barulho monótono dos guindastes, que arrebatavam pausadamente nas garras de ferro, para depositar em terra, a carga do poderoso transatlântico. A bordo, vultos andavam no convés, acima e abaixo, na faina das últimas ordens. As vigias apagavam-se, como os olhos de um Argos que começassem a adormecer. Fora, no cais, passadas vigorosas e tristes, apenas o guarda-civil, encarregado da ronda.

De repente, aproxima-se do portão que dá acesso aos navios, um inglês. Alto, louro, vermelho, mãos nos bolsos, cachimbo no queixo, tipo legítimo de marujo britânico. O andar medido, e seguro, denuncia o homem que trazia dez "whiskys" no estômago.

À entrada, quase, do portão, sente que lhe batem no braço.

— "Do you speak english?"

— "Yes, yes!" — responde o "beef", voltando-se, e vendo ao seu lado, miúdo, pequeno, apertadinho na sua roupa cintada, um rapazola imberbe, carinha de moça, tipo clássico de almofadinha.

Esperava que o seu interlocutor continuasse na mesma língua em que fizera a consulta, quando este explica, um legítimo português da Avenida:

— Então, me venda um revolverzinho assim!

E indicava, com as duas mãos, uma longe da outra, um tamanho de uns vinte centímetro.

— Oh, mim não compreende! — respondeu-lhe o inglês, dando de andar.

— Um revolverzinho assim! — tornou o "almofadinha", perseguindo-o. — Assim...

E como o oficial não desse mostras de compreender o que era:

— Um revolverzinho! Sabe! Um re-vol-ver-zinho!

E, levando, para explicar-se melhor, a mão direita ao bolso traseiro da calça, onde se costma trazer o revolver, fez, de novo, o tamanho da arma.

— Ah, senhorr, mim non tem dessa tamanho! — fez o inglês, olhos vivos, como quem parece ter compreendido.

E já com a mão no portão, ao ouvido do rapaz, para o guarda não ouvir:

— Quem tem desse tamanho é... é... senhorr comandante...

E tomou, firme, o rumo da prancha.

O encarecimento da vida havia tornado delicada a situação dos Pereira Claro. Os vestidos de Dona Beatriz, que eram comprados nas grandes casas de modas, passaram a ser feitos em casa, pelas mãos impecáveis da encantadora senhora. Os chapéus, começaram a ter a mesma proveniência: a moça adquiria os enfeites, a forma, o forro, e fazia tudo entre o almoço e o jantar, ou nos serões até meia-noite, enquanto o marido, fazendo-lhe companhia, fumava pacificamente o seu cigarro, lendo os jornais.

Essa mudança de vida havia impressionado vivamente a Luizinha, linda bonequinha de quatro anos, único fruto daquele grande amor do casal.

— Agora, minha filhinha, — dizia-lhe a mãe, — tudo tem de ser feito em casa. Os meus vestidos, os teus, as camisas de teu pai... Não se compra mais nada feito...

Foi por esse tempo que o dr. Pereira Claro, vendo a filhinha tão só, acompanhando o serão materno, lembrou, rindo, a Dona Beatriz, na presença da pequenita:

— Agora, Bibi, vamos arranjar uma maninho para a nossa filhinha, que está tão sozinha... Vamos comprar um irmãozinho para ela... Estás ouvindo?

A essas palavras, a pirralha interveio:

— Ah, papai, não! Não gasta dinheiro por minha causa!

E passando-lhe as mãozinhas pelo rosto, muito meiga, muito terna, muito carinhosa:

— Façam mesmo em casa... Sim?

O maior cuidado de Dona Marieta Gomes era a educação daquele filho. Horrorizava-a a idéia de possuir um rebento da sua árvore sem a noção completa da moral católica, e foi com essa preocupação que tomou, ela própria, à sua conta, a educação completa do pirralho.

— Quero que você se torne um homem como seu avô; um homem sério, formado na lei de Deus, e que seja, um dia, fidalgo da Santa Sé!

E assim ia sendo, mais ou menos. Sem confiança no marido, que podia manifestar informações profanas ao seu Ricardinho, ou saía madame com ele pela cidade, ou pedia ao pai, o cone Souza Viana, que saísse, levando-o a conferências, às exposições, aos lugares instrutivos. E foi em uma visita à Escola de Belas Artes, que o menino, vendo o avô parado diante de um mármore admirável representando uma beleza feminina, em tamanho natural, indagou, vivaz:

— Vovô, que folha é esta?

— É folha de parreira... — informou o ancião, a voz trêmula, puxando-o carinhosamente pelo braço...

Dias depois, passeavam Dona Marieta, o filho, e o padre Corrêa, amigo da família e padrinho do garoto, pelo jardim da grande chácara do Corcovado, quando o reverendo estacou diante de uma videira, cujas folhas haviam sido atacadas pela filoxera. Estacou, arrancou a folha, examinou-a devidamente e ia atirá-la fora, quando o Ricardinho indagou, os olhos muito vivos:

— Dindinho, que bicho é esse?

— É a filoxera, uma moléstia das parreiras... — informou, paciente, o sacerdote.

— E isso só dá nas plantas de verdade? — insistiu o menino, os olhos na cara do padre.

E como ninguém respondesse, por não ter compreendido:

— É porque o vovô, quando vai comigo naquele museu, fica um tempo enorme, olhando aquelas folhas que estão naquelas mulheres de pedra!

(Theodore de Banville)

Frei Andoche, da ordem dos capuchinhos, que fora a Vanes pregar pela quaresma, é um santo feio como o diabo. Seu velho rosto parece ter sido feito a machado em qualquer tronco de árvore, e sua barba sm trato é como uma erva rara que os carneiros já tivessem tosquiado. Como, porém, sabe conduzir as suas ovelhas aonde quer, ora pela carícia de uma voz persuasiva, ora a golpes de bastão, e, fecundo em recursos, não é apanhado nunca de surpresa — as penitentes sucedem-se no seu confessionário, na velha igreja, onde o campanário se atira vertiginosamente para o céu.

Acaba ele de despachar muitas formosas damas e camponesas, que devolve limpas e brancas como o linho estendido no campo depois de lavado, quando se lhe ajoelha diante a linda Guilhermina Josselim, cujo seio é levantado por profundos soluços, e que, sob as suas rendas e a sua cabeleira de ouro, chora como uma pequena Madalena. É que ela viu passar através das giestas o filho do senhor, o jovem conde Olivier, montado no seu belo cavalo sírio, e, ao vê-lo tão belo, sentiu a tentação de beijá-lo. Por isso apenas, ela se acredita amaldiçoada sem misericórdia, e, com toda a sua força de criança, bate no peito, mortificando-o.

Frei Andoche não encobre a Guilhermina a gravidade do caso; todavia, não quer a morte da pecadora, e, após lhe haver recomendado a penitência de muitas orações, ajunta, ainda:

— E como o seu pecado foi querer beijar um homem bonito, o castigo consistirá em dar um beijo no homem mais feio e repugnante da paróquia.

— Oh, padre!... eu beijar vossa reverendíssima?!... — exclama ingenuamente a rapariga, horrorizada, e que se torna toda vermelha, como se sentisse, já, na face florida a rude barba do capuchinho.

Com aqueles olhos doloridos e agonizantes, que dormiam e acordavam de minuto em minuto na pálida alcova daquele rosto moreno, Dona Casemira tornara-se o culto da graciosa cidade nortista. Cabelo partido ao meio, e repuxado sobre o crânio como o de Rosita Rodrigo, toda ela era simplicidade elegante, singeleza tenteadora, um misto, enfim, de candura e de pecado. Casada aos dezoito, fora-lhe o marido para o Amazonas dois anos depois, não voltara mais. E estava já com vinte e quatro, quando os homens, que não eram seu marido, começaram a rondar-lhe a casa modesta, transformando-a, de refúgio da miséria, em secreto manancial de fartura.

Em breve, toda a gente em Fortaleza sabia da mudança operada, repentinamente, na vida da Casemira. Às olheiras pela renúncia haviam sucedido as olheiras pela abundância. E eram essas olheiras, exatamente, que enganavam frei Manoel da Pacificação, superior dos Carmelitas, o qual não se cansava de dizer, com a piedade no coração:

— É uma santa, a Dona Casemira; uma verdadeira santa!

Por três anos as beatas ouviram, sem protesto, aquele elogio do frade. Até que, um dia, à sua repetição, à porta do confessionário, uma resolveu protestar:

— Santa, não, frei Manoel! Isso é até um sacrilégio! Toda a gente sabe que Casemira vive hoje, ora com um, ora com outro!

Frei Manoel era, porém, desses homens teimosos, que nunca se deixam converter.

— Pois, é por isso mesmo que eu a chamo santa, filha! — exclamou, par não dar as mãos à palmatória.

— Diga-me uma coisa: a pia dágua-benta é santa?

— É, sim, senhor, frei Manoel, — confirmou a devota.

E o frade, vitorioso:

— E a pia não é um lugar onde todos metem o dedo?

O Hildebrando Borges Santos não primava pela delicadeza, quer de maneiras, quer de sentimentos. Educado em um trapiche do porto, para o qual entrara aos dezoito anos com a vassoura, e do qual saíra aos quarenta com a chave do cofre, absorvera, como uma esponja humana, todos os modos e palavrões que flutuavam naquele ambiente de carregadores e marujos. Aos quarenta e dois anos, enfim, rico e livre, resolveu constituir família, escolhendo para complemento a mocidade sadia de Leonorzinha Guedes, filha honesta e linda de um modesto guarda-livros da praça.

Feito o pedido, que foi considerado uma felicidade para os Guedes, começou o Borges Santos a entrar na casa do futuro sogro como se entrasse no seu trapiche. A própria noiva era retirada, às vezes, de casa, independente de despacho, e sem "conhecimento" do pai, e levada pelo noivo, com "frete" pago, para os pontos mais longínquos da cidade. E foi assim que, debaixo de coberta enxuta, chegou a carga do noivado ao porto franco do casamento.

O dia desse acontecimento foi, para os Guedes, o mais feliz dos anais da família. Os parentes encheram a casa, as galinhas encheram os fornos, e as flores encheram, com o seu perfume e com as suas cores, o mobiliário laqueado da noiva. Às quatro da tarde, começaram os preparativos individuais. Às cinco, Leonor estava pronta, no seu lindo vestido branco, e ajustava à cabeça mimosa a grinalda de flores de laranja quando o Borges Santos apareceu, no seu fraque irrepreensível, teso como um figurino de alfaiataria, emoldurado na porta do quarto.

— Que é isso? — indagou, de súbito, encaminhando-se para a rapariga, a testa franzida. — Com licença...

E, tomando da cabeça da moça a grinalda singela, começou a despojá-la, um por um, dos botões de laranjeira.

Impiedoso, como quem cata jasmins num jasmineiro, ia o bárbaro pelando a grinalda, a começar pelos maiores, da frente.

— Ah, Hildebrando! Assim, não — exclamou a rapariga, de repente, em certo momento, os olhos úmidos, juntando as mãos ainda sem luvas. E arrancando a grinalda, com violência, aos dedos grossos do miserável:

— Deixa as de trás; sim?

Não obstante a sua origem, e os seus meios de fortuna, o Rafael Benevides era, positivamente, um rapaz que não levava muito alto as suas ambições. A mãe, a aristocrática Dona Tereza Benevides, censurou-o, por mais de uma vez:

— És um toleirão! Então um rapaz como tu, bonito, rico, educado, vai olhar para uma burguesa como a Lili Monteiro, quando tens no alcance da tua mão criaturas como a Edith Soutello, como a Iaiá Thompson, e outras meninas de educação e de fortuna?

Essa observação materna acordou no Rafael o desejo de fazer um casamento vantajoso. E, como, dos melhores, preferia o melhor, moveu os olhos, logo, para a Julieta Faria gama, orgulhosíssima filha do visconde de Faria Gama, que era, além de uma das maiores herdeiras do Rio, uma das mais formosas criaturas da cidade.

Resolvido a possuir aquele magnífico pedaço de mulher, Rafael aproveitou uma ocasião em que a moça se encontrava só, na sala de música dos Moura Baima, e caiu-lhe aos pés, ajoelhado no tapete:

— Julieta, amo-te!

A essas palavras, que eram mais um grito, a moça ergueu a cabeça, soberba:

— Que faz o senhor para chegar ao meu coração?

Ante essa resposta, que era um insulto, Rafael sentiu a necessidade da vindita.

— Eu não quero chegar ao teu coração, Julieta! — gemeu.

E, de joelhos, com os olhos no tornozelo da moça:

— Eu não quero chegar tão alto...

(Alphonse Allais)

Parque de "Rouse's point". Noite, já alta. Ouvem-se ao longe os acordes da "Washington Post".

("Washington Post" é a "New dance" que, com toda certeza, fará furor em Paris, este inverno. Para conhecer a música, com as devidas instruções para a dança, escrever ao meu velho camarada Whaley Royce, 118, Young street, Toronto. As pessoas que quiserem economizar as despesas de correio, sempre exageradas, podem ir procurá-lo pessoalmente. Nesse caso não convém deixar Toronto sem dar uma olhadela às quedas dágua do Niagara, curioso fenômeno situado não longe de lá.)

Fechemos os parênteses.

— E Vossa Excelência, "miss", não dança esta noite?

— Não senhor; esta noite, não.

— Por que, "miss"?

— Porque, eu vim de meia curta e não vim de calça.

— Pilhéria de Vossa Excelência!

— Pilhéria, não; olhe...

E levanta o vestido, para provar que é verdade.

Era uma obsessão aquilo do Rodrigo Maia: ele havia de morrer cedo, deixando viúva a sua querida Eleonora, a qual, tão linda, tão elegante, tão jovem, casaria outra vez, indo tombar noutros braços.

— Que tolice, Rodrigo! — protestava a esposa, nessa tarde. — Tu estás forte, moço, com saúde, por que essa mania de falar em morte?

Com a cabeça do marido encostada ao travesseiro de plumas do seio macio, Eleonora tranqüilizava o companheiro de cinco anos de casamento. Que ele não se afligisse com essa idéia de que ela casaria de novo, quando ele morresse. O seu nome, ela o guardaria eternamente, através da vida.

E enquanto falava, ia-lhe apertando a cabeça ligeiramente grisalha, de encontro ao decote cheiroso.

— E se casares? — teimou o marido.

_ Não caso não, filhinho; fica tranqüilo.

— Jura, então!

Os lindos olhos para o teto, onde o "abatjour" dançava embalado pela brisa doce do campo, a moça fez, então, aquele juramento sublime:

— Pelas horas que são, eu te juro, meu marido, que posso ficar viúva cinco, dez, vinte vezes, e não me casarei nunca!

E beijando-lhe os cabelos entremeados de prata, sob os quais os pensamentos, enganados, se acomodavam:

— Estás satisfeito?

Graciosamente morena, com uns grandes olhos negros, cabelo ondeado, corpo flexível, e um andar de cobra no descampado, mme. Batista Belo era, sem contestação admissível, uma das figuras mais acentuadamente chics da cidade. Os seus vestidos não eram ricos, nem eram caros os seus chapéus; era, porém, tão definido o cunho da sua elegância, que, nas, festas, nos teatros, nos passeios, era ela quem se revelava a rainha, a dominadora, a vitoriosa, no meio de outras mais opulentamente trajadas.

Conhecedor da pérola que possuía, o marido vigiava-a de perto, cumulando-a de mimos, — de colares, de brincos, e, principalmente, de pulseiras, de que ela possuía, já, a mais soberba variedade. Eram pulseiras de platina, com brilhantes; de ouro, com safiras; de prata, com pérolas foscas; e eram, sobretudo, de metal mais ou menos liso, em número de vinte ou trinta, que tilintavam ao menor movimento, dando à linda senhora, quando ela passava na Avenida, um galhardo aspecto de burra-madrinha. À tarde, ao saírem, o dr. Belo não deixava de recomendar:

— Lulu, as pulseiras? Já as puseste todas?

Um dia, intrigada com essa exigência galante o marido, madame não pode mais, e interpelou-o:

— Augusto, por que exiges que eu use tanta pulseira, quando saio? Isto já está, até, se tornando ridículo...

E insistindo:

— Por que é; hein?

— Por que é? — gracejou o desgraçado, relutando.

E num acesso de coragem:

— É para saber, no cinema, onde é que você anda com a mão!

Absalão Bandeira tornara-se famoso no quarteirão pelo seu ciúme desordenado. Desde noiva, Dona Zelina vivera encadeiada àquele déspota, como o relógio à corrente ou como o peixe apanhado no anzol. Durante vinte e um anos de vida em comum, nunca pudera a ilustre senhora dar uma passo fora de casa sem ter a seu lado, como sentinela que guardasse o criminoso, o espectro daquele marido intolerável.

— Absalão, eu posso ir aqui defronte, em casa de minha tia? — indagava a pobre.

E ele, imediatamente.

— Podes ir, sim. À tarde eu venho te buscar, para atravessares a rua.

Se assim dizia, assim fazia. Conta-se, mesmo, que, uma tarde, num tempo em que não se possuía criados, chegara Dona Zelina à janela para fechá-la, quando lhe caiu lá embaixo, no calçamento, um anel de brilhantes. Se passasse alguém, ela podia pedí-lo. A rua era, porém, deserta, e, como a linda moça não tinha ordem do esposo para franquear o portão, ficou de alcatéia até à noite, quando o Absalão chegou e foi, com ela, até à calçada, juntar o anel.

Ao fim de vinte e um anos de existência pautada nesse regime, Dona Zelina morreu. Adoecer e morrer, foi, para ela, a mesma coisa. Morreu como os justos, ou antes, como os pássaros. Sem grandes amizades, as coroas foram poucas, e raros os conhecidos que se deram ao trabalho de acompanhar o enterro.

À hora do saimento fúnebre, com o caixão no carro agaloado, tomavam os amigos lugar nos automóveis do cortejo, quando um dos íntimos chegou ao viúvo, e indagou:

— Vais ao cemitério, Absalão?

— Eu? Por que não? — observou o viúvo, limpando os olhos.

E como quem se sente insultado pela pergunta:

— Minha mulher nunca "saiu" só!

E correu a tomar o chapéu, para acompanhar o enterro.

(Rodolphe Bringer)

Era uma vez uma pequena tão gentil, tão gentil, como não é possível explicar.

Para dar uma idéia do que era ela, deve-se dizer que a sua mãe, a propósito de tudo ou sem propósito nenhum, lhe dava de vez em quando um beliscão. Ao contrário, porém, do que faziam as outras meninas, esta não ia, jamais, queixar-se à polícia.

O seu consolo era reclamar:

— Quando eu for grande, e tiver uma filha, hei de dar-lhe, também, uma porção de beliscões!

O tempo ia, porém, passando, e nada da menina ficar moça, para casar-se, ter uma filha, e dar, nesta, os beliscões que a mãe lhe dava.

Um dia, enfim, a menina sentiu-se mulher. Com a resolução de cumprir a promessa feita durante tantos anos, a moça de agora casou-se, por uma semana ou duas, com o açougueiro do canto.

Ao fim de nove meses nasceu-lhe um filho homem.

Desapontada, e disposta a cumprir sua palavra, a rapariga casou-se com o leiteiro, depois com o caixeiro, e ainda com um "chauffeur" e, finalmente, com um empregado do café. E cada um desses lhe deu um filho varão.

— Quem sabe se não é porque eu sempre me tenho, casado com homens, que os filhos nascem homens? — pensou.

E experimentou casar-se com a telefonista.

Desta vez, porém, não lhe nasceu nada.

Há, mesmo, neste mundo, muita gente sem sorte...

Aquele dia, era de lição de piano. Manhã cedo, ao levantar-se, mlle. Alzirinha tomou o seu banho, penteou o seu cabelo cor de mel, que não cortara segundo a moda, e às oito horas estava já na sala, pedalando com maestria, enquanto a mão corria, ligeira, pela dentadura alvi-negra do seu "Pleyel" cor de castanha.

Com seus dezoito anos sadios, Alzirinha Batista era uma linda mulher em formação. Morena, olhos negros, seios turgidos, orelhas pequeninas e vermelhas como duas pétalas de uma rosa desfolhada pelo vento, possuía uma linda boca miúda, e uns dentinhos de rato feitos, parece, de propósito para aquela boca.

Naquele dia amanhecera, entretanto, um pouco indisposta. O jantar da véspera, na casa dos Peixoto Rocha, não lhe fizera bem; tanto que, ao chegar em casa, a mãe lhe dera a tomar uma dose de bicarbonato, que a moça ingeriu, entre caretas. E era assim que ali estava, ao piano, sozinha na sala, à espera da professora. A mão corria-lhe, rápida, da esquerda para a direita do teclado com uma proficiência de mestre. E o piano gargarejava, multiplicando as notas, quando, a certa altura, a moça parou, levantou-se ligeiramente no banco de rodízio, fez uma cara de esforço e de sofrimento, e, soltando um gemido, exclamou:

— Arre! Que alívio!...

Reencetou a lição, tocou as escalas mais algumas vezes cm assombrosa agilidade e de novo, parou. Fez os mesmos movimentos, o mesmo esforço, a mesma cara, soltou o mesmo gemido, e, com ele, a mesma exclamação:

— Que alívio!...

De repente, porém, no meio da lição, notou, pelo reflexo no piano, um vulto, atrás do banco.

Voltou-se de súbito, e empalideceu: estava ali, à sua frente, o Abelardo, seu noivo, que, tendo entrado sorrateiramente na sala, ficara atrás, de pé, afim de não interromper o estudo.

— Meu Deus do céu! — exclamou a moça, de si, consigo; — ele terá ouvido alguma coisa?

E procurando dominar-se, um sorriso contrafeito ao canto da boca e cravo:

— Desde quando você está aí?

— Eu? — fez o rapaz, brejeiro.

E impiedoso:

— Desde o primeiro alívio...

Há muito tempo vinha o Fernando Rezende estranhando aquela amizade da sua Heloísa com a Cláudia Sobreira, viúva do Almirante Sobreira, falecido gloriosamente de gripe no combate da Ilha do Boi. Assim que amanhecia, mme. Rezende tomava do fone, pousado na mesa de cabeceira, pedia ligação para a casa da amiga, e punham-se a conversar. O marido levantava-se da cama, tomava banho, engolia o café, e saía; e as duas ficavam, ainda, atracadas ao fio, numa permuta de beijos, de carícias, de segredinhos que era, mesmo, de acordar desconfianças. Após o almoço, uma ia para a casa da outra, e, quando se separavam à tarde, era para, cada uma da sua casa, continuarem a palestra, e novo, pelo famigerado telefone.

— Mas que amizade! — matutava o jovem advogado. — Palavra de honra que nunca vi coisa assim! Enfim, são mulheres...

Uma tarde, chegou Fernando Rezende em casa um pouco mais cedo do que de costume, e perguntou pela senhora.

— Foi para a casa de Dona Claudinha, — informou a copeira. — Mas eu acho que elas se desencontraram, porque Dona Claudinha já estava em caminho para cá.

— E já chegou?

— Já, sim, senhor. Ela está lá em cima, no quarto.

Fazendo-se desentendido, Fernando Rezende subiu a escada, e simulando não saber de nada, enveredou pelo quarto de dormir, onde a viúva do almirante se achava, no momento, mudando de roupa.

— Ah! a senhora?!... fez, detendo-se no meio do aposento.

E percorrendo-lhe, com os olhos, o corpo admirável, que a moça procurava esconder, debalde, prendendo entre as duas mãos, aberta, a pequena camisa de cambraia.

— Saia, doutor! — impôs a moça, vermelha, visivelmente perturbada pela surpresa.

— A senhora esquece-se... que esta casa é minha? — fez o rapaz, sorrindo.

E em tom pilhérico, sacudindo o paletó, o colete, o colarinho para cima de uma cadeira:

— Ademais, a senhora está de tal modo ligada à minha mulher, que é como se fosse ela própria. Aos meus olhos, não há diferença nenhuma.

E enquanto falava, ia arrastando para o divã, docemente, a encantadora criatura, que se deixava levar, envergonhada, mas sem opor a mais ligeira resistência.

Ao fim de dois minutos, estavam, os dois, no mais apaixonado dos idílios, quando a porta do quarto se abriu, a apareceu, muito branca, o chapéu ainda a cabeça, o boá na mão, o vulto de Dona Heloísa.

— Que é isto?... — fez, no arranque da surpresa.

E avançando para a amiga:

— tu me traíste! Hein?... Tu!...

E os punhos cerrados, o rosto vermelho de cólera, como quem sente, de súbito, desmoronar o seu castelo:

— Adúltera!... Adúltera!... Traiu-me!... Enganou-me! Logo com quê?...

E com desprezo, indicando o marido:

— Com um homem!...

À mesa do "restaurant" de luxo em que se haviam encontrado, os dois boêmios trocavam impressões e confidências quando o Fernando Mota, vibrando um murro na mesa, protestou:

— Bolas! Pelo que vejo você tem tido nos braços maior número de mulheres do que eu!

— E por que não? — estranhou o outro.

— É que eu duvido!

— Duvidar, duvido eu!

— Então vamos fazer uma coisa, — propôs o mais novo dos dois, o Souza Júnior; vamos por esta avenida afora, e, cada vez que um veja uma criatura com que já tenha tido amores, mas amores reais, de abraços, de beijos, de carícias, irá contado, alto, combinado?

— Está combinado, concordou o primeiro.

Momentos depois, lado a lado, braço no braço, desciam os dois estroinas a grande artéria elegante, quando o Fernando Mota, ao passar por uma francezinha de bico de lacre, contou, iniciando a série:

— Uma!

— Uma! — fez, também o Souza.

Mais um momento e, à passagem de uma dama ricamente vestida, o Mota bisou:

— Duas!

— Duas! — fez, por seu turno, o companheiro, demonstrando terem andado, até aqui, pelos mesmos caminhos.

À esquina, quase, da rua Sete, vinham em sentido contrário, completamente distraídas, uma senhora ainda nova, deliciosamente pintada, e uma rapariga fresca, risonha, de uns vinte anos no máximo. Eram a mulher e a filha do Mota, que o Souza não conhecia como tais, e que iam para o cinema. À aproximação de ambas, o esposo contou, com justiça:

— Três!

E o Souza Júnior, enquanto o Mota se tornava branco, lívido:

— Três... quatro...

À medida que se passavam os dias, ia Dona Lourencinha ficando mais nervosa, mais aflita, mais inquieta. Há um ano que o sr. Balduino caíra naquela apatia, naquele desinteresse pelos seus encantos, e como não se julgasse de todo inapetecível, ficava a pobre senhora a torturar-se com aquela triste situação do marido.

O fenômeno era, entretanto, um fato natural. Com quarenta anos de idade, casara-se Dona Laurencinha com um homem mais velho do que ela quase vinte. Era de esperar, pois, que o marido já estivesse quase gelado, quando a esposa não havia começado, sequer, a esfriar.

Desolada, assim, com a sua condição, amaldiçoava a virtuosa senhora o seu destino, que lhe dera um esposo sem energia, sem força, sem vontade, quando, uma tarde, o céu começou a cobrir-se de nuvens escuras, anunciando um temporal. A atmosfera abafava, como um forno. E Dona Laurencinha pensava na vida e no mundo, quando a tempestade caiu, precedida de uma ventania formidável. Sacudidas pelo sopro do vento, as portas e as janelas batiam, com violência. As cortinas panejavam como velas, ao mesmo tempo que os papéis voavam de cima dos móveis, arrastados no turbilhão.

Fora, no quintal, o vento fazia estragos maiores. Folhas de zinco foram atiradas longe, enquanto a poeira, revolvida no solo, se erguia, rodopiando. Peças de roupa que estavam no coradouro, subiram como papagaios de papel, enquanto a lavadeira corria para dentro de casa, segurando com as mãos a saia de chita azul, que a ventania procurava suspender.

— Nossa Senhora! — gritou a rapariga, enveredando pela cozinha.

E agarrando as saias, com mais força:

— Esta ventania levanta tudo!...

A essas vozes, Dona Lourencinha, que estava no quarto de costuras, chegou à copa, indagando:

— Que é, Domingas?

— Nada, Dona Rencinha. É a ventania que está levantando tudo, no quintal!

Um raio de esperança cortou o cérebro da pobre senhora abandonada. E foi animada por ele, que gritou, para cima:

— Bene?

— Que é? — respondeu o marido.

E ela:

— Vem ficar na ventania um pouquinho, filho! Talvez te faça bem!

(Catulle Mendes)

— Toc! Toc!

— Quem é?

— Abra; faz favor?

— A estas horas? Está doido, cavalheiro! Já estou preparada para deitar-me. Acabei de tirar o meu colete e uma das minhas meias cor de creme, que já atirei, ali, para o divã.

— Deixe-me tirar a outra!

— Não seja impertinente! Continue o seu caminho.

— Amo-a!

— É-me indiferente. Todos me amam.

— Morrerei a teus pés.

— Viva, ou morra, pouco me importa!

— Sou moço.

— Deve ser ingênuo. Vá embora.

— Sou belo.

— Continue o seu caminho; já lhe disse.

— Sou rico.

— E é tolo. Vá embora, ou eu chamo alguém.

— Eu sou amante da sua amiga Clementina.

— Ah! — fez a linda rapariga.

E abrindo a porta:

— Por que não disse logo?

Mãos para trás, nervoso, colete desabotoado, a camisa aberta no pescoço taurino, o velho Jacinto, o sapateiro, andava de um lado para outro, com o inferno no coração. Nunca pensara que lhe acontecesse semelhante desastre. Aquela filha, que era seu encanto, o consolo da sua vida, deixar-se cair no infortúnio, entregando a sua honra a um indivíduo que ela não sabia, sequer, quem era!...

E vinham-lhe à imaginação os vinte anos passados, a infância da pequena, tão miúda, tão risonha, tão rechonchuda, com aqueles braços muito alvos, muito roliços, e aquelas duas covinhas no rosto.

Sentada na velha cama de gente pobre, Dona Januária fazia o seu "crochet" manejando a agulha com lentidão. A indignação do marido não lhe chegava à alma, que parecia tranqüila, serena, alheia à tempestade que abalava o companheiro. O que sucedera, parecia-lhe natural, esperado, inevitável. A Carminha era bonita e nova. Foi tentada e sucumbiu. Que havia de novo, nisso? E foi pensando assim, que pediu ao esposo:

— Sossega, Jacinto! Depois, o rapaz não foi ingrato: deu-lhe um anel de brilhantes que vale quase quinhentos mil réis!

— Quinhentos mil réis?... — fez o velho, com ironia. — Quinhentos mil réis pela honra de uma donzela!...

A essas vozes, Dona Januária atirou o "crochet" para um lado:

— Você acha pouco? Hein?... Você acha pouco?

E, de pé, as mãos nas cadeiras:

— Você não se lembra que só me deu, por muito favor, um par de sapatos, que não valia nem dez?

Chapeuzinho de seda azul, vestido de crepe-da-China branco, desses que escorregam pelo corpo à semelhança de uma camisola de dormir, aquela figurinha passava pela Avenida, com uns ares tão sérios, tão graves, fisionomia tão fechada, que infundia respeito. Que ela era bonita, toda a gente o via. Ninguém, porém, se atrevia a uma palavra, a uma exclamação, e, mesmo, a um olhar mais atrevido, com medo de represália.

Tic-tic, tic-tic... E lá se ia, passo miúdo, pescocinho teso, busto empinado, aquele vultozinho encantador. E em torno dele, ou sob seus passos, o que ficava, ou o que se sentia, não era o coro da lisonja, mas um perfume de inocência, de pureza, de castidade.

À esquina da rua da Assembléia, apareceu, porém, o primeiro insolente.

— Meu Deus, que beleza! — exclamou o atrevido.

A menina parou, os olhos fuzilantes.

— Malcriado! — rugiu, entre dentes.

E num longo dengue, antes que ele fugisse:

— Quem foi que lhe disse que eu me chamo Luíza e moro na rua José dos Reis, 41?

Tomás Gonçalves da Gama , o famoso mundano de roupas tão cuidadas e maneiras tão distintas, polia as unhas tranqüilamente, recostado na cadeira de embalo da sua "garçoniere", quando a campainha retiniu.

A "garçoniere" de Tomás da Gama era composta, apenas, de dois compartimento: o gabinete, onde havia o divã, a cadeira de mola, uma estante de livros, e uma pequena mesa de centro com flores sempre frescas; e o "templo", como ele denominava o adito em que se achava a cama, com os móveis complementares.

Ao repinicar da campainha, o rapaz, que estava ainda com o pijama da noite, abriu a porta.

— Ah! és tu?... Entra, Maneco!

O recém-chegado, um rapagão moreno, alto, de cara escanhoada, estava visivelmente preocupado. E foi isso mesmo que o dono da casa verificou, ao vê-lo atirar para o divã o chapéu, a bengala, e um jornal que trazia na mão.

— Que há de novo? — foi perguntando Tomás da Gama, na previsão de qualquer coisa desagradável.

— Para mim nada; para ti, tudo!

— Assim? — fez o mundano, parando o movimento do polidor.

E interessado:

— Que há?... Vamos... explica-te...

Manoel Bentes, o Maneco da saudação amiga, inclinou-se para a frente, no divã, encaixou os dedos das mãos uns nos outros, e começou:

— Sabes? Estás perdido!

— Eu?...

— Tu, sim.

— Mas, dize o que há; pelo amor de Deus!

— O que há, é que o Broxado Ramos sabe, já, que tu és amante da mulher dele!

— Sabe?

— Sabe de tudo!

A testa franzida, mordendo o lábio inferior nervosamente, Tomás da Gama fechou os olhos, como para meditar melhor. Estava mergulhado em silêncio como um peixe no oceano. De repente, porém, voltou-se para o amigo.

— Maneco! — chamou.

E como o outro o olhasse:

— Tu achas que o Broxado Ramos possa me comprometer, contando isso a alguém?

E agitou o polidor com fúria, brunindo as unhas.

Sentado à mão direita de Deus Padre, o Nazareno olhava, das alturas, a sucessão infinita de nuvens. O panorama que se desenrolava aos seus olhos tristes fazia-lhe lembrar aquele que vira, uma tarde, do alto do Gólgota, nas proximidades de Jerusalém. Apenas, aqui, são as nuvens que se amontoam, enquanto que, lá, eram o monte Garizim, o monte Efraim, e o Tabor, perdidos na bruma da distância. Aquele espetáculo transportou-o a dias longínquos da sua vida na terra. E foi com saudade, numa tristeza dolorida, que chamou:

— Padre!

Chegou, pressuroso, o velho apóstolo, as chaves do Paraíso tilintando nas mãos.

— Pedro, — pediu, — Maria de Madalena está aí?

— Está, meu senhor; está no terceiro Jardim das Bem-aventuradas.

— Dize-lhe que venha comigo.

Momentos depois surgia, os olhos amortecidos, um sorriso de Gioconda no canto da boca mimosa, a antiga amante de Jesus.

— Maria, — pediu Jesus, com doçura, — aproxima-te.

E melancolicamente, os olhos afogados na distância:

— Uma profunda tristeza enche-me, neste momento, o coração. Parece que minh'alma, pregada numa cruz, entra em agonia... Não sei que seja, nem compreendo. Sei, apenas, que tenho um desejo irresistível de reviver, por um instante, certos momentos passados na terra: o episódio do poço de Jacó, as bodas de Caná, a ressurreição da filha de Jairo, e, sobretudo, aquela noite em que, na casa de Simão, o Fariseu, ungiste os meus pés com o teu bálsamo enxugando-o, depois, na toalha de ouro dos teus cabelos...

E após um instante:

— Maria, queres tu repetir aquele instante sublime da minha missão, e da tua vida?

Um choro miúdo, triste, dolorido, foi aresposta a esse pedido tão doce.

— Ah, Senhor, não posso! — gemeu a mísera.

E sacudida pelos soluços:

— Eu cortei os meus cabelos, Senhor!

E numa voz ainda mais triste:

— É moda...

(Conto popular do sul da França)

Naquela manhã, minha mãe encheu o meu cesto azul com duas vezes doze maçãs, e disse-me:

— Clara, minha filha, vai à cidade, e evita parar pelo caminho.

Pus meu vestido gomado, meu xale cor-de-rosa, calcei minhas sandálias de ir à missa, tomei o cesto debaixo do braço, e parti.

Ao atravessar o bosque, como fizesse calor, tirei o meu xale e continuei a andar. A erva era tão fresca, e tão espessa, que eu descansei o cesto, e sentei-me no chão. Minhas maçãs brilhavam tanto, e cheiravam de tal maneira, que eu própria lhes sentia o perfume. Tentada por elas, palpei a primeira e mordi. Palpei a segunda, e fiz o mesmo.

— Minha mãe não saberá de nada! — dizia comigo mesma.

De súbito, os ramos estalam, e aparece, entre a folhagem cintilante de orvalho, a figura de um caçador. Os olhos dele eram negros, e brilhantes. Quando a sua boca sorria, tornava-se, branca e rosadas, como as maçãs que eu acabava de morder.

— Bom dia, pequena! Que fazes tu por aqui num dia tão quente?

— Meu senhor, — respondi, — eu vou à cidade vender para minha mãe estas duas dúzias de maçãs.

— Não é preciso ir tão longe, minha menina, — tornou o caçador; — eu as comprarei todas, e tu terás, assim, bastante tempo para descansar, antes de levar à tua mãe o escudo que tenho aqui.

— Um escudo, caçador? Tudo isso por tão pouco?

Sem dar uma palavra, ele estendeu-me o seu chapéu, no qual eu pus as frutas, que se pôs a contar.

— Olá, pequena! Faltam duas.

— Não faltam, não, meu senhor; — gemi, assustada.

— Não mintas, menina; faltam duas, sim. Ou me entregas as duas dúzias, ou eu tomo o meu escudo. Procura-as, e dá-me o par de maçãs, que eu não vejo!

— Procure-as o senhor! — suspirei, fechando os olhos.



Ah, minha mãe, minha mãe! Como me custou ganhar aquele escudo!...

Desde que tomou, aos quatro anos, conhecimento do mundo e da vida, A Madaleninha indagara de Dona Judith:

— Mamãe, onde é que está o papai?

As primeiras respostas da moça foram uma série de sorrisos, de desculpas ingênuas, para enganar a pequenita. Por essas informações, o pai estava de viagem, andando de cidade em cidade, das quais volveria, um dia, carregado de presentes e brinquedos, para as duas. E quando a menina reclamava, pelo menos, um retrato do viajante misterioso, Dona Judith fechava os olhos, numa evocação, como quem pretende reconstituir, um por um, os traços de uma fisionomia esquecida.

Com dez anos, já, a Madaleninha pedia explicações mais claras, à pobre mãe abandonada. E esta avançou um ponto:

— Minha filha, teu pai não voltará mais!

— Nunca mais, mamãe?

— Nunca mais!

— Ele morreu, então?

— Não; não morreu, não.

E apertando a menina de encontro ao peito:

— Tua mãe, filhinha, é divorciada, isto é, uma senhora separada do marido.

A pequena arregalou muito os olhos, e não falou mais no assunto. Aos quatorze anos, voltou a pedir esclarecimentos:

— Mamãezinha, a senhora é separada do papai... Não é?

— Sou, minha filha.

— Diga-me, então uma coisa: quanto tempo a senhora viveu com ele?

Dona Judith baixou os olhos, para poder esconder duas lágrimas. E foi sem poder escondê-las, que desvendou o seu horrível segredo, rebentando em soluços:

— Pouco tempo, minha filha...

E caindo no ombro da menina boquiaberta:

— Uma noite, num trem...

Heloísa Thompson Gomes era uma das encarnações mais encantadoras do Diabo. Pequenina, graciosa, cabelos de ouro finíssimo, possuía a boca do tamanho de uma cabeça de dedo polegar, e nesse pequeno cofre de pelúcia vermelha, umas pérolas miudinhas, roubadas de algum colar maravilhoso.

Caixa de um estabelecimento comercial na Rua Sete, tornara-se o principal atrativo da casa. Ao regressar do almoço, em uma pensão da Rua São José, trazia sempre seis, oito, quinze fregueses, na sua esteira, em verdadeira perseguição. E cada freguês era, na certa, uma gravata, um par de punhos, uma dúzia de lenços, que a casa vendia.

Certo dia, a Heloísa demorou mais, no almoço. Ao voltar, estava tão vermelha, que parecia congestionada. Quando quis abrir a "caixa", as mãos tremiam-lhe, como se acabasse de tomar um susto. De tal modo era, enfim, a sua transformação, que as companheiras, à saída, indagaram o motivo daquele nervosismo.

— Ah, meninas! — exclamou a rapariga, como quem deseja desafogar. — Bem se diz que a virtude da mulher está, sempre, por um fio! Agora é que eu compreendo.

— Tu?

— Eu, sim. Vocês não conhecem aquele tenentinho moreno, bonitinho, que vai sempre comprar gravatas na loja? Pois, bem; eu me deixei arrastar por ele, e fui, hoje, visitá-lo. Foi uma loucura. Felizmente ele é mais fraco do que qualquer uma de nós, o fio do meu colete deu nó, e ele não pôde, de modo nenhum, arrebentar!

E num estremeção brusco:

— A minha virtude esteve, hoje, por um fio!...

Em toda a rua Nossa Senhora de Copacabana, da praça Serzedelo para cima, não havia noivos que mais se quisessem. À tarde, encerrado o expediente da Secretaria, o Gustavo não se detinha na Avenida nem, mesmo, para engulir um café: tomava um bonde e corria à casa da noiva, onde a Zinha o esperava com a sua "toilette" fresca, para um ligeiro passeio pela praia. Ao anoitecer, tornavam à casa, jantavam, e, braço dado, lá se iam para o cinema, onde se encolhiam a um canto, indiferentes às bufonarias de Carlitos e, ainda mais, à bravura de Tom Mix.

Carinhoso com a noiva, o rapaz não ia ao seu encontro sem levar-lhe uma pequenina lembrança. Hoje, era um pacotinho de balas; amanhã, um livro, mas, sempre, alguma coisa. E foi com esse pensamento, que, naquela tarde, entrara numa confeitaria no caminho, comprando um cartucho de balas de hortelã, e outro de chocolate com creme. Chegado à residência da menina, ofereceu:

— Olha o que eu te trouxe! Hortelã.

— Não; eu gosto mais do chocolate.

Zizinha insistiu, porém, pelo chocolate com creme, abriu o cartucho, e pôs-se a comê-lo, gulosamente. O chegar à praia, queixou-se:

— Sabes de uma coisa? Eu não estou me sentindo bem. Vamos para casa?

Em casa, começou a vomitar, e vômitos foram esses que, duas horas depois, estava morta, envenenada, pelo chocolate que havia comido.

Desolado, Gustavo tomou o caminho da sua residência, no Leme. Pálido, nervoso, não se continha, andando de um lado para outro, numa aflição desesperadora.

— Que é isso, meu filho? Sossega! — pedia-lhe a mãe, juntando as mãos. — Eu compreendo o teu sofrimento... Foi porque perdeste a noiva... Não é?

— Não, minha mãe, não! — gemia o rapaz.

E num grito de consciência, arrancado do fundo da alma:

— Imagine a senhora que... eu estive para comer o chocolate!...

E teve um arrepio, de horror.

Um dos romances de Joaquim Manuel de Macedo tem um personagem, o comendador Sancho, sexagenário, elegante e galanteador, que, antes de qualquer baile, escolhia e decorava, sempre, uma frase para dirigir às senhoras. Como não fosse, porém, de imaginação fértil, procurava uma expressão alheia, empregando-a na primeira oportunidade. Na festa em que o romancista no-lo apresenta, a mania do comendador é dizer a toda moça que lhe dá o braço:

— Vossa Excelência é o sol!

E satisfaz-se com isso, como o personagem do Eça, imitado, na tela, pelo Silvano do "film" "Não troqueis vossos maridos", que se contenta com dizer às mulheres de que se acerca:

— Se eu fosse o Rei, dar-lhe-ia três coisas: o Prazer, a Riqueza e o Amor...

Dessa classe de elegantes sem imaginação, o mais curioso foi, porém, o Manuel Felismino, tornado incomparavelmente célebre pelas suas calinadas de salão.

Manuel Felismino estava, em certa festa familiar, encostado a uma janela, que deitava para o jardim, quando ouviu ao seu lado uma senhora dizer, apontando o céu, a um cavalheiro com quem palestrava:

— Olhe, doutor, aquela estrela... Que luz brilhante; não acha?

E logo, em seguida:

— O doutor não gosta do brilho das estrelas?

O moço, que era um galanteador pertinaz, atalhou, pronto:

— Gosto, sim senhora; mas gosto muito mais do brilho dos olhos de Vossa Excelência!

Manuel Felismino achou bonita a expressão e preparava-se para empregá-la oportunamente, quando anunciaram o jantar. Todos se encaminharam para o salão, e ele com os demais, ocupando automaticamente a primeira cadeira que lhe indicaram.

Começavam os convivas a alegrar-se, conversando alto, quando a dona da casa, que servia, ela própria, os seus convidados, veio ter à cadeira de Felismino, sustentando na mão uma travessa de galinha assada. Ao vê-lo com o prato vazio, a distinta senhora indagou, gentil:

— O senhor gosta de perna de galinha; Sr. Felismino?

O rapaz irradiou alegria, glória, felicidade. Era a hora da frase providencial. E sem perder tempo, voltou-se, rápido, num grande sorriso:

— Oh, minha senhora gosto muito... Mas gosto mais, muito mais, da perna de Vossa Excelência!...

Dois segundos depois Felismino estava na rua, encostado a um poste, limpando com um lenço o "smoking" novo, besuntado de gordura de galinha.

(William Jacob)

Um negro encontra-se com outro negro, amigo seu, em plena rua, e queda suspenso ao vê-lo de terno novo, chapéu novo, sapatos novos, e outras demonstrações de prosperidade.

— Qu e é isso? — exclama. — Tão elegante? Fizeste algum bom negócio, Tom?

— Mas do que um bom negócio, Willian. Tenho agora uma profissão.

— Uma profissão?

— Sim; sou orador!

— Orador? E que é isso de ser orador?

— Não sabes? — estranha o calunga; — pois vou explicar-te o que é um orador. Se tu, encontrando-se com um amigo qualquer, lhe perguntares quanto são dois e dois, ele te responderá, simplesmente: "dois e dois são quatro". Se, porém, fizeres a mesma pergunta a um orador, o orador te dirá isso desta forma: "Quando, no curso dos sucessos históricos; quando, através da marcha ininterrupta da humanidade pelo caminho dos tempos chegam a ser uma necessidade ininterrupta da Humanidade pelo caminho dos tempos chegam a ser uma necessidade imprescindível o uso e a prática da numeração e o emprego e aproveitamento das quantidades que os algarismos exprimem e especificam; — é forçoso, é ineludível, é fatal, a exigência de somar o conceito matemático que significamos com o duplo da unidade, com a abstração aritmética que representamos, com igual quantidade homogênea, e, nesse caso, ninguém poderá contestar-nos se afirmarmos, resolutamente, decididamente, claramente, que um mais um são dois, e dois e dois são, invariável e eternamente, quatro". Isto é ser orador; compreendes?

Aquele grupo de senhoras chics possuía, todo ele, idéias originalíssimas sobre a vida e sobre o amor. A maior parte delas reduzia, porém, este sentimento a um certo número de sensações, descendo de uma atmosfera de idealidade ao baixo círculo dos prazeres terrenos. A mais formosa de todas falava, mesmo, assim:

— O amor, meu caro Sr. conselheiro, é uma espécie de música, ligeira ou lenta, suave ou tumultuosa, que o homem tira desse piano de nervos, que é a mulher. Homens há, que são grandes artistas, verdadeiros mestres na arte. Outros, não passam de principiantes, que não ligam, sequer, duas notas.

A dissertação era, como se está vendo, curiosa e inteligente. E foi certa do meu encantamento que a linda senhora continuou:

— Eu sei de homens que são verdadeiros Rossini diante de uma mulher. Delicados de alma e tato, eles tiram delas harmonias embaladoras, sentimentos doces, árias tão ternas que parecem destacadas do coro dos anjos. Outros são wagnerianos: amam com barulho, com tumulto, com uma raiva sonora que, às vezes, rebenta o piano!

— E Vossa Excelência, quais prefere? — indaguei.

— Eu? — atendeu a formosa senhora.

— Eu sou piano de concerto, em que se tem executado tudo: Chopin, Wagner, Saint-Saens, Massenet, Verdi, os mestres, em suma, da escola italiana, da escola francesa, da escola alemã. Homem educado e de sentimentos finos, meu primeiro marido tirou de minh'alma e do meu corpo uma série de harmonias brandas, que me faziam adormecer... O segundo, foi um wagneriano de marca. Era um rapaz brasileiro de trinta e tantos anos, sangue de fogo, temperamento tropical, capaz de tocar a quatro mãos tendo apenas duas.

— E agora?

— Agora estou viúva. O piano está fechado, à espera de outro pianista.

Um sorriso brejeiro deu, nela, sinal aos olhos. Estes incendiaram-se, e eu, que os vi assim, observei:

— E agora, que música seria agradável ao piano dos seus nervos?

— Ao meu piano?

— Sim, senhora.

A linda criatura não tergiversou.

— Um... "jazz-band"! — respondeu.

E estremeceu toda, os olhos semicerrados, como se lhe tivesse corrido um calafrio pela espinha.

No pequeno gabinete de estudo, forrado de vermelho, com grandes pinceladas de ouro no alto, a linda mme. Valdez aguarda, as mãos mergulhadas n aloura cabeleira revolta, o seu professor de português. Alta e esguia, é um gracioso tipo de beleza moderna. Os olhos negros, denunciando o artifício dos cabelos dourados, são pequeninos e móveis. E debruçam-se, vivos, sobre as janelas das pálpebras, como para espiar, curiosos, as rosas da face, renovadas cada manhã. A boca pequena, tornada menor pelo gesto habitual de quem vai dar um beijo, sangra, ainda, a tinta do "baton". E tudo isso está concentrado diante do livro aberto, em que aqueles vinte e dois anos risonhos, os seios premidos contra a mesa, procuram absorver, uma a uma, as regras da boa linguagem. De repente, passos na sal contígua.

— Ah, professor! É o senhor?

E as duas mãos voam, nervosas e brancas, como duas pombas saudosas, para se refugiarem no ninho de outras mãos que as apertam, matando saudades.

Elegante e esbelto, o rapaz que acaba de entrar é um admirável tipo masculino. Quarenta anos, quase. Rosto longo, escanhoado, e olhos que dominam, prendem, subjugam. Traja com distinção, terno claro, gravata cinza, uma pérola como alfinete. Sentam-se, diante um do outro, na mesa redonda. A discípula fecha o livro, inquieta. E começa a lição.

— Conjugue, madame, o presente do indicativo do verbo amar.

E ela:

— Eu amo... tu amas... ele...

— Basta! Basta! — interrompe, visivelmente preocupado, o rapaz.

E levantando-se para olhar na porta:

— No verbo amar, madame, é necessário, sempre, muito cuidado...

E olhando, prudente, para um lado, e para outro, a ver se vem alguém:

— É preciso sempre muito cuidado com a "terceira pessoa"!...

Desejoso de mostrar ao Paulino de Abreu, seu velho amigo do norte, recentemente chegado ao Rio de Janeiro, os aspectos mais curiosos da cidade, o Lobato Batista levou-o ao Pão de Açúcar, ao Corcovado, à Gávea, ao Jardim Botânico, a Paquetá, aos lugares, em suma, que lhe pareceram originais ou pitorescos. Farto de natureza, o nortista pediu-lhe, afinal, um dia:

— Eu queria visitar uma casa "chic"... Sabes?

— Uma casa de chá?

— Não, filho; coisa mais discreta. Um desses lugares alegres, em que a gente dança, bebe, pula, se diverte. Compreendes?

— Ahn! Compreendo, — fez o outro. — Queres ir numa pensão galante, não é?

O pernambucano confirmou a expressão e o Lobato, que fora sempre um homem sério, grave, sisudo, começou a pensar como seria isso.

— Achei! — exclamou, de repente, batendo na testa. — Vou levar-te à casa da Judith!

Essa Judith, que o Batista Lobato conhecia por informações de amigos, era uma italiana velha, gorda, oxigenada, famosa pelas suas funções de alcoviteira. E foi para o antro da megera que o carioca levou o companheiro, subindo, um atrás do outro, a escadaria coberta por uma passadeira carmesim. Em cima, Lobato baixou-se, olhando pelo buraco da porta do corredor, por onde se divisava a sala das inquilinas, lá dentro. Engastado o olho na cavidade da fechadura, recuou, de repente, convidando o outro.

— Vamos descer, Paulino?

— Por que? Vamos entrar... Anda!

— Não; não entres!

— Mas, eu sou um homem, filho! — obtemperou o nortista. — E não sou tão pudico assim, que não possa ver estas coisas!

— Mas, eu não posso entrar! — insistiu o pobre Batista.

E puxandoo amigo, escada abaixo:

— Minha mulher está aí dentro, e me passaria uma descompostura, se me visse num lugar destes!

A porta estreita e luminosa do Paraíso das jóias, guardado, no céu, pelas estrelas mais miúdas, encontraram-se, pedindo passagem, três colares de pérolas. Ligadas umas às outras pelo fio que as reunira no mundo, as gotas leitosas recordavam, no seu brilho doce, pequenos carreiros de Santiago, inventados pelos anjos.

— Eu — falou o primeiro, — pertenci, na terra, à esposa de um banqueiro. Era uma senhora honesta, e sofredora. Caí do seu pescoço de mármore, e, para não ser pisado pelos homens, vim esconder-me no céu.

— Eu, — suspirou o segundo, — vivi ao pescoço da mais sedutora das criaturas. Era uma formosa moça casada, que pertenceu, de corpo, unicamente ao seu marido. Tal era, porém, a sua graça, a sua tentação, a promessa mentirosa dos seus lábios e dos seus olhos, que os amigos do esposo lhe davam dinheiro, enchendo-lhe a bolsa com as mãos.

— Pois, eu — gemeu o terceiro, — pertenci a uma cortesã. Os seus admiradores compravam-lhe as carícias, e passavam. E cada um, ao passar, deixava um óbolo no seu regaço.

— Cada uma das minhas pérolas representa uma lágrima! — disse o primeiro colar.

— Cada uma das minhas representa uma mentira! — declarou o segundo.

— Cada uma das que me formam, representa um beijo! — murmurou o terceiro.

Nesse momento, abriu-se a porta do Paraíso. E um anjo pequenino, que dela saiu, tomou nas mãos de neve o colar em que cada pérola valia um beijo, e penetrou, com ele, no recinto sagrado, onde as pérolas e os diamantes, os rubis, os topázios, as pedras todas, tocadas pelas mãos de Deus, se mudam em estrelas...

Não obstante a sua aparência de boêmio, Luiz Gonzaga Fernandes era um homem de coração. Casado com uma criaturinha de boca pequena e olhos grandes, adorava-a sinceramente e, por isso mesmo, doía-lhe a prática das suas próprias infidelidades.

— É uma infâmia da minha parte — monologava ele, às vezes, no automóvel, a caminho de casa. — Não seria mais humano, mais lógico, mais digno, que eu lhe revelasse as minhas aventuras, pondo-a ao corrente de minha vida?

E conluia, de si, consigo:

— Sim; porque, o que é indigno em um homem não é ser infiel à companheira, mas ser infiel e querer passar por um santo. O pecado está não na infidelidade, na quebra do pacto matrimonial, mas na mentira, que é o mais degradante dos vícios.

E mordia o dedo, nervoso com o seu pecado.

Certo dia, após uma série de conjecturas profundas, resolveu, decidido:

— Não; é preciso acabar, de uma vez, com esta miserável hipocrisia. Minha mulher é pura, honesta, virtuosa, e não merece que eu lhe minta. Vou confessar-lhe, pois, francamente, lealmente, sinceramente, as minhas relações com Liloca, mulher do Gaudêncio. Se ela me quiser perdoar, muito bem; se não, fico em paz com a minha consciência, com a minha alma, com o meu coração, satisfeito com ser um marido infiel, mas nunca um mentiroso!

Chegado à casa, chamou à parte a esposa. E, contou-lhe, sem omitir uma só particularidade da sua vida, a afeição que o prendia à esposa do seu melhor amigo, e a necessidade, que havia, de que ela, a sua Cotinha, sua mulher, o perdoasse. Era uma fatalidade; mas, que havia de fazer, se era aquele o seu destino?

Fisionomia serena, com a mão no queixo e o cotovelo no espelho da cama, Dona Cotinha escutava o marido. E quando ele acabou a exposição do seu caso, indagou, sem raiva:

— Dize-me uma coisa, Luiz: há quanto tempo tu me enganas com a Liloca?

— Eu? Há quatro anos.

— E achas que eu te devo perdoar?

— Acho!

— Então, filho, — fez a moça com ironia, — és tu que deves perdoar a mim.

— ?...

— Há seis anos que eu sou amante do Gaudêncio, marido dela!

Não obstante o sortimento do seu armarinho, o Borges Pedreira não tinha a freguesia a que o seu negócio fazia juz. E a razão era simples: casado com uma senhora ciumentíssima, que montava guarda ao balcão, as damas de Pedra Branca evitavam, quanto possível, a sua casa, só indo comprar lá alguma coisa quando, mesmo, não havia remédio. Alta, magra, olhar inquisitorial, Dona Marocas constituía um espantalho do belo sexo, olhando cada freguesa como uma rival, que alí ia, não para fazer compras, mas para conquistar-lhe atrevidamente o marido.

Vigiado assim de perto, passando a vida de sentinela à vista, o Borges Pedreira devia ser um dos maridos mais honestos, mais castos, mais fiéis, de Pedra Branca. E Dona Marocas estava quase certa dessa verdade, quando entrou, um dia, na loja, uma pequena de uns nove anos, muito espevitada, filha de uma das raparigas mais bonitas da cidade, e que pediu, logo, entre um cumprimento e um sorriso:

— Sr. Pedreira, eu queria três metros de bordado.

Com Dona Marocas a seu lado, o negociante pôs sobre o balcão algumas caixas do artigo, para que a menina o escolhesse.

— Despache-me, que mamãe está com pressa! — reclama, com energia, a pequena.

— Escolha o bordado; pois eu hei de saber?

— O senhor sabe, sim! — insiste a menina.

— Eu? — exclama o Pedreira, avermelhando-se de repente, a olhar, de esguelha, a esposa, que o devora com os olhos. — Posso eu lá adivinhar?!...

— Ora, não sabe!... — retruca a menina, zombeteira.

E com um risinho de mofa:

— É aquele, "seu" Pedreira, aquele da camisa da mamãe!...

(Antônio Francesco Doni, escritor italiano do século XVI)

Havia na antiga Lombardia um sujeito de meia idade, que tomou para esposa uma jovem e linda rapariga. Após a cerimônia, conduziu-a ele, com todas as unções e electuários, à alcova nupcial.

O noivo não era, porém, mais, o esgrimista que havia sido. Por mais esforços que fizesse, não conseguia abater o adversário. As duas espadas valiam mais que o bastão. Joga daqui, joga dali, e nada de encontrar a carta de triunfo.

Sentindo a má posição em que se encontrava naquele momento, com a bolsa comprida, estirada, vazia de toda moeda, teve uma idéia: levantou-se no traje em que se achava, e abrindo a janela, começou a entoar, em altas vozes, e de um fôlego só, as santas palavras do "Magnificat".

Ao ouvir o canto religioso, a mulher ficou toda agitada, e as pessoas da casa, despertadas àquela hora, correram, aflitas, para o quarto dos noivos. Supunham que ele tivesse enlouquecido, e perguntaram-lhe:

— Que é isso, homem? Que quer dizer essa maluquice? Por que está cantando a esta hora?

— Isto vai mal, — respondeu "messer" Mazza (era esse o nome do sujeito) fazendo-se desentendido; — é que já é de madrugada e eu, até esta hora, nada consegui.

— E que quer dizer, no meio de tudo isso, o "Magnificat"?

— Eu fiz todo o possível — respondeu o velho, — para cumprir o meu dever. Pedi a quem devia que se pusesse de pé, tirando o seu chapéu em homenagem à noiva. Foi tudo debalde; então, lembrando-me que, nas novenas, sempre se canta o "Magnificat" e se toca o órgão, todo o mundo se levanta, me veio a idéia de recorrer a esse remédio, afim de obter o que ainda não consegui!

Toda a gente se pôs a rir e "messer" Mazza continuou a cantar, até de manhã...

O Pedro Gaudêncio, estudante de Medicina, é de um escrúpulo comovedor. Na Faculdade, onde cursa o 3° ano, todos o estimam pelo respeito que cerca os mestres, pela gentileza com que fala aos companheiros, pela atenção com que se refere aos contínuos.

— Esse moço parece até filho do Ataulfo de Paiva! — observou, uma vez, o professor Dias de Barros.

E justificando a opinião:

— É o cavalheirismo em pessoa!

O Gaudêncio era, realmente, incomparável, nas suas manifestações de respeito. O caso ocorrido na praia do Flamengo em certa manhã de verão, dá uma idéia do homem e dos seus costumes.

Enrolado em seus calções pelos joelhos e na sua camisa vermelha e branca, tomava o futuro médico o seu banho de mar, em um grupo de rapazes e moças. Mergulha daqui, nada dacolá, foi o Gaudêncio se animando, se agitando, se entusiasmando. E estava entusiasmado, animado, agitado, quando, em virtude de um diurético tomado pela manhã, sentiu desejos de realizar a mais elementar das necessidades. Se fosse um cachorro, e estivesse em terra firme, teria corrido para um poste ou uma parede, e se equilibrado, apenas, sobre três pés. Homem, que lugar mais conveniente do que aquele, dentro dágua?

Pedro Gaudêncio é, porém, escrupulosíssimo. E de tal forma, que, no melhor da festa, escorrendo água, saiu do banho, meteu-se no roupão de felpa, e partiu. Avenida Beira-Mar em fora. Em frente ao Hotel Central encontrou um guarda-civil.

— Moço! — chamou, aproximando-se.

E ao ouvido do policial:

— Onde é, por aqui, o mictório?

A mulher, quando é inteligente, vale por dois homens; quando, porém, é dura de cabeça, não há esforço que lhe faça compreender o espírito de uma frase. Algumas há, mesmo, em cujo cérebro, como no daquele adversário de Camilo, não penetra uma idéia nem amarrada numa bala de revólver.

Dona Josina Bordalo pertencia, para desgraça, mais do marido do que dela própria, a essa classe de criaturas desprotegidas do céu. Às vezes, em uma reunião, alguém emitia uma expressão espirituosa; toda a gente ria, satisfeita; ela, entretanto, esbugalhava os lindos olhos castanhos, pousando-os, ora no rosto de um, ora no de outro, como a indagar onde estava o espírito da pilhéria.

Não obstante essa falta de agudeza, Dona Josina fazia ao marido as grosserias mais surpreendentes. E a mais espantosa foi, sem dúvida, a que lhe saiu de um jato, na tarde em que berrou, numa terrível ameaça:

— Olhe, "seu" Custódio, no dia em que você me azucrinar muito a paciência, eu ganho a rua e vou lhe enganar, ali defronte, com o Joaquim padeiro.

— Enganar-me a mim, com o Joaquim Padeiro? — fez o Sr. Bordalo.

E numa gargalhada gostosa:

— Eu sempre queria ver!... Eu sempre queria ver!...

Essa expressão do marido, tomada ao pé da letra, irritou Dona Josina. E foi com os olhos em fogo, que ela trovejou, avançando para o desgraçado:

— Você?... Mas você quer ver, p'ra que?

E num gesto de nojo, de desprezo, de repugnância:

— Eu não sabia que você tinha esse mau costume...

Os dois grandes olhos acesos na escuridão, berrando soturnamente como um formidável animal pré-histórico, o "landaulet" roda com lentidão pela rua solitária. Molhada, refletindo as lâmpadas da iluminação abundante, o asfalto estala sob os pneumáticos, atirando para um lado e outro partículas de água, uma estranha pedraria, que logo, se desfaz pelo chão.

Ao fim de meia hora de marcha pausada, estaca em frente a um portão, que se abre de par em par, como as mandíbulas de um dragão monstruoso. O carro penetra no jardim, o portão fecha-se sobre ele e, em breve, saltam do "landaulet", embrulhados, — ela, num luxuoso "manteau" azul e ouro, ele, na sua capa de gola de veludo, — o marquês e a marquesa de São Rafael.

Em cima, vai a moça pouco a pouco se desfazendo do vestuário. Após o "manteau" que ficou em baixo, rolam para o divã largo, repleto de almofadas festivas, o vestido, a cinta, a combinação, o "soutien-gorge". As jóias, uma a uma, vão saindo dos seus dedos, das suas orelhas, do seu colo, dos seus cabelos, como insetos que abandonassem uma rosa. Livre da opressão em que estivera durante horas, um biquinho de rubi espia, satisfeito, por um buraco do crivo da camiseta de linho... As mãos, libertas da luva, amparam, numa carícia, os dois pombinhos separados. E acaricia-os ainda, quando, amarrando os cordões do seu pijama de seda, o marquês penetra no quarto.

— Gostaste da ópera? — indaga, torcendo o comutador, que apaga uma das duas lâmpadas do teto.

— A ópera é como o amor, — objeta a marquesa, estendendo-se no leito vasto e puxando para o peito a onda clara do lençol.

E enquanto se apaga a outra lâmpada:

— Volta-se satisfeita, mas torna-se no outro dia...

(Do "Bah Nahmed")

Era uma vez, na cidade de Tchinfanfu, circunspecção do Kuetcheu, havia um estudante chamado Ting-lih-Tchung. Como a sua vida era consumida da leitura dos grandes livros da Sabedoria, não tinha para o servir senão uma criada.

Certo dia, na ocasião em que a rapariga trazia vinho ao seu senhor, dirigiu-lhe, este, uma pilhéria. A criada, que era muito tímida, ficou toda vermelha, e, na sua atrapalhação, respondeu-lhe com uma inconveniência.

— Que é isto? — gritou-lhe o estudante. — Como é que te permites dizer tais coisas na minha presença? Vais ser castigada pelo teu desaforo!

E, apanhando de um feixe de varas que estava junto à parede, marcha para a desgraçada, levanta-lhe a saia, baixa-lhe a calça, e vai começar a vergastá-la, quando, à vista daquela carne moça e sensível, se compadece, de rrepente. Durante um momento, olha, examina a beleza daquele corpo, sujeito a castigo tão infamante. E, encostando o feixe de varas ao muro, acaricia-a, anima-a e , ao e, ao fim, manda-a embora.

— Agora, cai! — diz-lhe.

No dia seguinte, estava o estudante no seu gabinete, a meditar sobre os livros da Sabedoria, quando a tímida Tengchi lhe bateu à porta.

— Que é, ainda? — indagou, irritado, Ting-lih-Tchung. — Eu não te havia recomendado que ninguém me perturbasse no meu estudo?

— Ah, meu mandarim, sou eu! — exclamou a rapariga, entrando.

—E que desejas?

Tengchi baixa a cabeça e soluça:

— Eu pratiquei outra inconveniência, meu senhor; e vim aqui para ser castigada outra vez...

Há duas horas, as mãos cruzadas no peito, os olhos postos no chão, o Pulchério aguardava a sua vez para aproximar-se do padre Roberto. De três em três minutos, uma devota, maneiras humildes, ares compungidos, ajoelhava-se diante do confessionário, onde o vigário a escutava, a fisionomia doce, o coração transbordando bondade. Após uma, ia outra. E cada uma que se ajoelhava, erguia-se de rosto calmo, sereno, tranqüilo, na suave expressão de um desafogo.

Chegada a vez do Pulchério, este encaminhou-se, desconfiado, para o confessionário. Era um caboclo baixo, entroncado, olhos miúdos, tez cobreada, cabelo duro, limitando a testa pequena. Vestia calça e blusa de riscado grosseiro, e esborrachava no chão, enormes e largas, as duas tartarugas dos pés.

Retorcendo nas mãos o velho chapéu de carnaúba, ajoelhou-se em frente ao confessionário, benzeu-se, e, à ordem do padre Roberto, rompeu a balbuciar, atrapalhado, as orações da liturgia. Feito isso, principiou, propriamente, a confissão.

— Acuse-se, meu filho! — pediu, com doçura, padre Roberto.

Animado pela bondade do sacerdote, o Pulchério deu início à enumeração das suas culpas. Uma, principalmente, era assinalada por ele com interesse.

— Ah, senhor padre, eu cometi um furto, e quero que o senhor padre me dê uma penitência!

— Um furto, filho? — fez o sacerdote, escandalizado.

E após um instante:

— Que foi que você furtou?

O rosto baixo, a voz surda, o Pulchério começou:

— Eu furtei vinte e quatro galinhas do quintal de Dona Guilhermina, senhor padre. Há três noites eu vou lá, e todas as noites trago de lá seis galinhas.

— Vinte e quatro galinhas?... — fez o padre Roberto, estranhando aquela conta.

— Sim, senhor, sr. padre. Eu queria penitência para o furto das vinte e quatro galinhas de Dona Guilhermina.

— Mas, filho, — tornou padre Roberto, — três noites, furtando você seis galinhas cada noite, são apenas dezoito galinhas!

— Mas eu quero penitência para as vinte e quatro, senhor padre.

— ?...

— É que eu deixei lá marcadas outras seis, que vou buscar hoje de noite!

Das seis ou oito mil costureiras francesa que o Rio de Janeiro hospeda atualmente, nenhuma era tão feliz nos negócios como aquela rapariguita de cabelos de ouro e olhos castanhos, que atravessava, sempre, à tarde, o pedaço mais movimentado da Avenida.

Efetivamente, era de admirar que, enquanto as outras empregadas de "atelier" patenteavam as suas dificuldades de vida, só aquela mocinha pudesse apresentar-se de meias de seda e com vestidos que valiam dois meses de ordenado, cada um.

Os sucessos de Mlle. Ninete haviam, porém, forçosamente, de comprometer-lhe o organismo; e de tal modo que, seis meses após a sua chegada ao Brasil, começava a graciosa parisiense a emagrecer, manifestando sintomas de uma grave alteração de saúde.

Sentindo-se dia a dia pior, correu Ninete ao consultório do Dr. Abel Porto, que, após um exame profundo e minucioso, lhe prescreveu um regime de vida:

— A senhora, — disse, — está carecendo de repouso; é preciso trabalhar menos; compreende?

— Mas, doutor... — aventurou a moça.

— Nada! Não tem isso nem aquilo. Trabalhe menos. A senhora não está assim de trabalhar?

— É, sim, senhor.

— Então? Agora é repousar. É descansar o corpo.

E abrindo a porta, para a cliente sair:

— Não se deite mais, durante o dia; sabe? Passe o dia em pé!

(Catulle Mendes)

Eu — começou John Kinkerbocker, burguês de Londres, ventripotente como um hoteleiro de "vaudeville", e nariz vermelho como uma pasta de sangue; — eu posso dizer que não há um "gentleman" na velha Inglaterra, nem no continente, que se possa orgulhar de me haver visto tombar para baixo da mesa. O gim, o brandy, o porter, o ale, nuca triunfaram sobre mim. Quando eu lhes tenha preparado uma boa cama de "beef" com queijo, um rio de "hand-and-half" pode rolar por dentro de mim sem o menor inconveniente deste mundo. Minha capacidade é incomparável. Eu absorvo e resisto como ninguém. Se me furassem a barriga, sairiam dela bebidas para embebedar, durante um domingo, todos os alcoólatras de Dublin. Aos meus olhos, só há duas pessoas dignas de elogio, em matéria de resistência ao álcool. É meu compadre Anaximandro Ponbocker, excelente bebedor de "ale", e "mistress" Flore Kinckerbocker, minha mulher, verdadeiramente notável no que diz respeito ao brandy.

Acendeu o cachimbo, e contou:

— Eu os estimo! Lamento, porém, o que sucedeu um dia em que tiveram a audácia de querer rivalizar comigo. Apenas tinham esvaziado, ele, trinta duplos de cerveja, e ela, quatro garrafas de aguardente, caíram os dois para debaixo da mesa, juntos, um nos braços do outro. Toda a noite, bebendo sempre, fresco, disposto, imperturbável, eu tive o desgosto de os ouvir soltar os suspiros mais melancólicos e gemidos de cortar a alma, de bêbados, que estavam. Chegaram mesmo a trocar beijos e carícias, como pessoas que não têm a cabeça no lugar. E no dia seguinte de manhã — verdadeiramente, eu começava a ter sede, — eles estavam ainda tão embriagados, que lutei com dificuldades enormes para convencê-los de que eu não os devia deixar, absolutamente, dormir juntos na mesma cama!

E para o "garçon":

— Mais um, duplo!

As festas mais solenes que se realizam no interior do Brasil são os casamentos. Uma semana antes do ato religioso ou do ato civil, já a família da noiva trabalha, esbaforida, nos preparativos da mesa. Porcos rechonchudos guincham no quintal, ao contato da lâmina assassina, que lhes entra pela papada. Depois, são as galinhas estrebuchando, os perus embriagados, a as cabras, e os pombos, e as vitelas, sacrificados barbaramente à felicidade do novo lar.

Na sala de jantar, grande como a dos conventos, as amigas e parentas da noiva cortam papel de seda, de cores variadas, para os frascos de doce. Inquieta, desmanchando em ordens, multiplicando-se em cuidados, a dona da casa conta os pratos, os garfos, as facas, as xícaras, as colheres, fazendo recomendações às comadres, encarregadas da cozinha e da copa. E quando alvorece o dia do desastre, isto é, do casamento, é a azafama, a balbúrdia, a confusão, até que, por volta das onze horas, a ronqueira do adro da matriz troveja, ao longo, anunciando a aproximação dos noivos, unidos para sempre.

Criado na cidade, entre o fonfonar dos automóveis e o ruído tumultuoso dos bondes, o Zézinho estranhava aquele excesso de festas no casamento da sua prima Joaninha, que ele fora assistir em São Cosme de Cima, em companhia do pai. Tudo aquilo lhe parecia pitoresco, e, ao mesmo tempo, excessivo.

— Mas, papai, tudo isso é para o casamento da prima? — indagava, espantado, com a curiosidade dos seus oito anos.

— É, meu filho. Aqui, no interior, é assim.

— Mas, dois bois, oito carneiros, três cabras, nove patos, vinte e sete galinhas, e essa porção de doces e bolos, que enche a metade da casa?

— É assim mesmo. A fartura, aqui, é um costume.

— E aquele arco enfeitado, erguido perto da porteira, que é que significa?

— É uma tradição do lugar, parece. Aquilo quer dizer que a vida dos noivos deve decorrer debaixo de flores, como a entrada na fazenda.

Nesse momento, a ronqueira do adro da igreja, anunciando a terminação do ato religioso, berrou ao longe, fazendo rolar o tiro pelas quebradas da serra.

— E aquele tiro, papai, que é que quer dizer? — indagou o pirralho.

O velho explicou:

— Aquele tiro, meu filho, é um sinal.

E sorrindo, com ironia:

— Quer dizer... que vão começar as hostilidades.

O sol estava novo, em folha, nesse tempo. Feito há poucos meses, a luz era dourada, e era um encanto vê-la refletida na juba dos leões, no dorso dos aurochs, nos chifres dos alces, ou na cabeleira fulva, e revolta, da primeira mulher.

Madrugada alta, na furna que haviam escolhido para domicílio, Adão erguia-se do leito de ervas secas, libertava-se dos detritos que lhe haviam aderido à pele tostada, e, sacudindo a esposa com o pé, fazia-a erguer-se, estremunhada.

— Veste-te! — ordenava-lhe.

Eva chegava à boca da caverna, estendia o braço para uma videira que aí se enredava, tirava uma folha, prendia-a com dois filamentos de planta, e, amarrando-a em torno dos rins, voltava à presença do seu senhor e marido.

Ao contrário do que se têm dito, não havia ainda, nesse tempo, a vaidade feminina. A mulher não se incomodava com afolha que lhe servia de vestimenta, pouco lhe importando que fosse verde ou amarela. Estendia a mão, e a folha que os seus dedos colhiam, era essa a sua "toilette" do dia.

Certa manhã, porém, andava o suposto primeiro homem à procura de mel, ou em perseguição dos alces nas planícies de Ghobbar, quando chegou à porta da caverna, amparado a um varapau, outro homem, que, pela estatura e pelo trato da pele, parecia vir de longe.

Ao vê-lo, Eva deu um pulo, desconfiada. E mirava-o, atenta, agachando-se, ou erguendo-se, quando o recém-chegado a envolveu com seus braços longos, apertando-a, entre grunidos, de encontro ao coração.

À noite, ao voltar à caverna, com o peito rasgado pelos espinhos e a barba, revolta, cheia de folhas emaranhadas, Adão vinha tão cansado que não viu, sequer, que as ervas do seu leito estavam mais machucadas do que de costume. Ao olhar, porém, a esposa, indagou:

— Onde está o vestido que puseste de manhã?

— Ah!... — fez Eva, com espanto.

E a cabeça baixa, como quem, procurando uma desculpa, mente pela primeira vez:

— Deu a lagarta...

Aqueles últimos cinco anos de vida matrimonial haviam sido para Joaquim Praxedes Monteiro uma tortura contínua. Certo, nada lhe demonstrava de modo seguro, positivo, irrecusável, o procedimento incorreto da esposa; uma voz interior dizia-lhe, porém, a todo instante, que ele estava sendo traído, enganado, ludibriado; e, por onde andava — na rua, no cinema, na repartição, — parecia ver em cada rosto, em cada olhar, em cada cumprimento, um sorriso de mofa um sorriso de mofa pelo conhecimento da sua desgraça. Com o surto dessa suspeita morrera a sua alegria. Tinha vontade, ímpeto, desejo de sacudir a mulher pelo braço, e perguntar-lhe a verdade; mas temia ser injusto, e calava-se. Até que, um dia, diante de seu leito mortuário, vendo-a desenganada pelos médicos, resolver explodir, e tranqüilizar, de uma vez, o seu pobre coração despedaçado.

— Laura, — pediu, segurando-lhe as mãos pálidas, e cobrindo-as de lágrimas; — Laura, dize-me, pelo amor de Deus: tu nunca me enganaste?

O peito opresso, a testa coberta por um suor frio, prenúncio seguro da morte, a moça olhou-o nos olhos:

— Não, Praxedes; nunca!

E para tranqüilizá-lo:

— Eu quero que meu corpo fique dando voltas no espaço se eu alguma vez te enganei!

E, soltando um suspiro fundo, morreu.

Passaram-se os tempos. Oito anos viveu ainda Joaquim Praxedes na terra, com a alma a oscilar, aflita, entre um arrependimento e uma saudade. Até que, por sua vez, após um acesso do coração, abandonou o seu invólucro terreno e foi bater às portas de ouro do Paraíso.

Ao penetrar na mansão dos bem-aventurados, olhou em torno e foi, logo, perguntando a São Pedro:

— Meu santo, diga-me uma coisa: a Laura anda por aqui?

— Laura? — fez o santo, semicerrando os olhinhos espertos, como para lembrar-se melhor. — Que Laura? Nós, aqui, temos milhares de Lauras.

— Essa a que me refiro é minha mulher... Laura Praxedes Monteiro...

O chaveiro pensou um instante, como quem procura recordar-se. E como se não lembrasse, chamou um anjo, que passava, as asas muito grandes e muito cândidas.

— Gisael!

O anjo acorreu.

— Existe aqui alguma Laura Praxedes Monteiro?

— Sim, mestre, existe.

E como quem estranha aquele desconhecimento de pessoa tão conhecida:

— Não é aquela que está servindo de ventilador?

A maior tristeza que Dona Hortência levaria deste mundo, seria a de morrer sem acalentar um netinho. Mãe de uma filha única, tratou, logo, de casá-la, quando a menina não tinha, ainda, dezesseis anos. E como sucede sempre a toda mãe que se apressa, casou-a mal, de modo a ter como genro o Eusébio Duarte, "almofadinha" sem reputação, sem dinheiro e sem saúde, para quem o casamento foi mais um encosto do que, mesmo, um caso de coração.

Casada a menina, a pobre senhora declarou, após o jantar, na presença da filha e de alguns convidados:

— Eu tenho aí no quintal uma galinha carijó, que é, mesmo, uma beleza; mas, essa, eu só a mato no dia em que tiver certeza de que meu primeiro neta já está em caminho para este mundo!

A noite de núpcias da filha foi para Dona Hortência o que é, sempre, para as mães amorosas: um tormento. Coração alarmado, ouvido à escuta, olhos escancarados na treva, não dormiu um instante. Manhãzinha, levantou-se, e, antes, mesmo, de preparar-se para descer, foi bater à porta do quarto dos noivos.

— Mariazinha? — chamou, — Mariazinha?

— Que é, mamãe? — respondeu, de dentro, estranhando, a voz da filha.

E a velha, muito terna, muito branda, muito doce:

— Posso matar a galinha?

(História Inglesa)

Minutos após o derradeiro suspiro, viu-se Jim Barret arrastado pelo peso das suas faltas, às portas escuras do Inferno. Ao vê-lo, Belzebu consultou rapidamente a sua escrituração, e comunicou-lhe, coçando o ventre com os chavelhos: — O amigo tem de escolher entre estes dois suplícios: o fogo eterno ou o rio de fezes humanas. Decida-se!

— Pode-se ver antes de escolher? — indagou Jim Barret, com a sua franqueza de inglês e de homem prudente.

— Naturalmente, — declarou o demônio. `Aqui não se engana ninguém.

E fazendo-lhe um sinal, conduziu-o à fogueira enorme, crepitante, em que os corpos danados se torciam, se enrodilhavam, como se fossem pedaços de madeira inflamável.

— Vamos ver o rio de fezes, — pediu o desventurado, arrepiando-se todo ao ver, com os olhos fora das órbitas, o espetáculo horrendo, que ele jamais imaginara.

Transportado à margem do rio de imundices, o condenado quase desfalece. Era horrível de ver, e, mesmo, de imaginar. Pesada, grossa, vagarosa, a corrente escura descia, de modo quase imperceptível, no seu leito de podridão. Aglomerava-se ali, compondo-a, o produto de todos os esgotos da terra. O cheiro e a vista daquele horror causavam náuseas, tonturas, vertigens.

Jim hesitava, com a mão no nariz, na escolha daquele suplício para toda a eternidade, quando descobriu, fazendo esforços inomináveis para conservar a cabeça fora do rio, o seu amigo Jack Goldson, velho companheiro de deboche, que tinha ido prestar contas, antes dele, à justiça divina.

De um golpe de vista, Jim examinou a situação do antigo camarada. O nível do rio atingia, justo, abaixo do seu lábio inferior, não obstante as tentativas desesperadas do condenado, no sentido de levantar o rosto um pouco mais, e ficar com o queixo de fora.

— É horrível este suplício, — observou Jim Barret a Belzebu; — mas, parece que eu prefiro isto à fogueira.

A estas palavras, ditas em meio tom, ouviu o antigo estroina uma voz estrangulada, que subia da corrente de fezes.

— Tu vens aqui para o rio, Jim?

O inglês olhou para baixo, reconhecendo a voz de Jack Goldson.

— Vou, sim, — confirmou o recém-chegado.

Horrorizado, com a podridão até à borda do lábio inferior, Jack Goldson ergueu os olhos, numa súplica. Ao seu entendimento de antigo estudante de física, surgiu aquele princípio científico, segundo o qual um corpo sólido mergulhado num líquido aumenta o nível deste. E foi com essa idéia horrível, que pediu, de baixo:

— Por Deus, Jim, desce devagarinho.

E sentindo a imundice do rio à altura do seu lábio inferior:

— Não faças onda... Sim?

"Para lá e para cá, um ao lado do outro, passeavam, passadas medidas e demoradas, no terraço dos Bandeira Mendes, o jovem mundano Felício Prata e o suntuoso capitalista Moreira da Cunha. Dentro, no interior do palacete, que fervilhava de cavalheiros e senhoras, a Orquestra Pearson atacava músicas sentimentais, arrastando a alma para o sonho e os corpos, unidos, para o meio das salas iluminadas. Indiferentes àquilo tudo, porque não dançavam, os dois continuavam a passear, nas suas casacas irrepreensíveis, fumando charutos de custo, quando o capitalista parou, de repente, diante da porta que dava, através do jardim de inverno, para uma das salas de dança. Felício parou também, olhando na mesma direção, despreocupadamente.

— Linda festa! Não? — observou o mundano.

— Muito bonita! — confirmou o outro.

E após um momento de silêncio:

— Quem é aquela pequena?

— Qual?

— Aquela de cabelo aloirado, que está da cor de rosa, dançando com o Bordalo? Bonita moça!

— Interessa-te? — indagou Prata acendendo outro charuto.

— A mim, mesmo, não. Quem me falou nela, perguntando quem era, foi o comendador Borges.

— O Costa Borges?

— Sim; o do Banco das Hipotecas.

Felício acendeu, em silêncio, o seu charuto, puxou-lhe duas fumaças, e guardou a caixa de fósforos. Feito isso bateu no ombro do amigo:

— dize-me uma coisa: isso rende?

— Isso, o que?

— Uma paixão do Costa Borges.

— Por que perguntas? — indagou o outro, intrigado com aquele interesse.

O rapaz tirou o charuto da boca, olhou para um lado, olhou para o outro, com ares misteriosos.

— É porque... — aventurou.

E ante o espanto do outro:

— Eu sou o marido dela!

O dr. Raul Leite, proprietário de uma das maiores casas de laticínios do Rio de Janeiro, nasceu predestinado. O seu próprio nome já o indicava para essa indústria, augurando-lhe o mais formoso dos futuros.

Não se resumia, porém, no nome, essa predestinação. Quando pirralho, o simpático industrial não falava senão em queijo, em creme, em coalhada, fabricando vaquinhas de madeira, enquanto os outros meninos, na sua idade, faziam cavalos de papelão.

Não foram, porém, as vaquinhas de pau que denunciaram à família aquela vocação irremediável. O caso foi diferente, e é contado, assim pelo dr. Estelita Lins, médico da Cruz Vermelha:

— Quando o Raul tinha sete anos, ainda se alimentava de leite humano, que lhe era ministrado por uma portuguesa, rapariga avantajada, grande como a Itália Fausto. Certo dia, tinha ele acabado de mamar, e como estivesse com preguiça, ficou no colo da ama, até que adormeceu. Ao acordar, quis mamar de novo, e não pôde. O leite não saía. A rapariga gritava desesperadamente, com umas dores que não sabia explicar. Chamado o médico, que era o dr. Érico Coelho, este mandou que afastassem o menino, até que a ama se restabelecesse.

— E que é que tinha a rapariga? — indagou alguém da roda.

E o dr. Estelita, em segredo:

— O Raul havia brincado tanto com a "caixa" de leite da rapariga, sacudindo-a, que este se havia solidificado dentro, transformado em manteiga!...

(Adaptado de Max Viterbo)

O almirante Bonifácio Marinho examinava cuidadosamente uns mapas, cujo estudo lhe fora confiado pelo Estado Maior, quando lhe surgiu à porta do seu gabinete, do lado que dá para o jardim, aquele indivíduo vestido sem apuro, fisionomia de judeu, afivelando ao rosto o mais artificial dos sorrisos.

— Pon tia, zenhor! — saudou o recém-chegado.

Interrompido no interior da sua casa por aquele intruso, que nem sequer pedira licença ou se fizera anunciar, o velho oficial sentiu-se, de repente, irritado. E ia explodir, num daqueles movimentos de cólera que o haviam notabilizado a bordo dos navios que comandava, quando o importuno ofereceu:

— Zenhor! Não guer gomprar festidos bara zenhorra? Fende parata, vreguez!

— Não, senhor, — respondeu, ríspido, o velho marujo. — E vá embora!

— Fende a brazo, vreguez!

— Não quero; e ponha-se ao fresco!

— E machina votografica, vreguez? Dem todas margas; gompra uma.

— Vá embora, senhor! Não me faça perder a paciência!

— Dem dambém berfumaria, zenhor. E dém äbat-xur", dem zabato, dém rouba veida; dém xabéo, dém crafata todas gores...

— Homem de Deus, ponha-se fora daqui! — trovejou o almirante, vermelho de raiva.

— E guarda-juva, zenhor? Dém golesão enorme guarda juva. Gompra uma, vreguez!

As mãos trêmulas de raiva, o almirante Bonifácio crispou os punhos, e avançou para o vendedor ambulante:

— Ponha-se em um minuto fora daqui! Já! Se em dois minutos não estiver no portão, em chamo os meus cães!

— Menos izo, vreguez! — suplica, ainda uma vez, o judeu.

E mãos estendidas:

— Eu dambem fende abito bara jamar gajorra... Gompra um, vregues!

O João Benevides era contínuo da Repartição Geral dos Telégrafos, quando, cumprindo o seu destino de funcionário, uniu os seus dias de dezoito horas aos de oito, da Maria Carlota, modesta costureira doméstica, filha mais moça de um colega mais velho. E foram residir, os dois, Carlota e Benevides, para as bandas do Mangue, em uma casa de cômodos onde a existência lhes parecia infernal.

Ao fim de dois anos de casamento, notando que o emprego público não tinha futuro, o Benevides teve uma idéia.

— E se nós fossemos para Minas? Hein, Carlotinha?

— É verdade, João!

E num suspiro:

— Quem os dera!

A lembrança não era, porém, descabida. O pai de Benevides, falecido há pouco, havia deixado ao filho um pequeno sítio abaixo de Mariano Procópio; e foi para lá que o ex-contínuo dos Telégrafos partiu, com a mulher, a cuidar seriamente da vida nas ocupações laboriosas do campo.

Seis anos depois estava o Praxedes, pai de Maria Carlota, a espanar mesas na repartição, quando recebeu uma carta e Minas. Era do Benevides, o qual comunicava estar de viagem para o Rio, a passeio, com toda a família.

Para o sogro, foi um espanto a prole da filha e do genro. Eram, nada mais, nada menos, que quatro meninos e duas meninas.

Ao ver aquele rebanho de netos, o Praxedes estranhou:

— Mas, minha gente, que é isso? Onde vocês arranjaram tanto menino?

— Foi o trem, pai!

— O trem?

— Então?!

E sorrindo, atrapalhado, torcendo nas mãos o velho chapéu de massa:

— O senhor sabe, não é?... Lá no sítio não tem cinema, não tem teatro, não tem circo, não tem distração...

Ficou mais vermelho:

— A gente dorme cedo; não é. O trem apita...

E baixando a cabeça, todo envergonhado:

— A gente acorda... Não é?

Tomás Vicente da Cunha era um desses homens que desconfiam, sempre, de si mesmos. Não obstante a sua bela figura de cavalo platino, e aquela palidez que tanto encantava as mulheres, não acreditava, jamais, no prestígio da sua pessoa. Se uma senhora o olhava num baile ou num bonde, o seu cuidado consistia em voltar-se para trás, procurando, modesto, o alvo daquela distinção. A sua timidez não admitia que uns olhos femininos procurassem a sua humildade, e, muito menos, que alguma das moças do bairro o quisesse para marido.

— Não sejas tolo, Tomazinho, — dizia-lhe a mãe, num sorriso de bondade orgulhosa. — Tu és um rapaz bonito, forte, encantador, e não há moça, no Rio, que não te queira para esposo. Basta que estendas a mão, e escolhas!

Convencida de que o rapaz não tomaria, jamais, por si, uma resolução, procurou Dona Amância, ela própria, resolver o caso matrimonial do filho, casando-o com Carmenzita, filha mais nova do seu irmão Geraldo, e uma das meninas mais lindas que as areias de Copacabana têm visto nestes últimos tempos. E estavam casados há um ano, quando o Tomás enveredou, certa manhã, pela casa materna, chorando como um bezerro faminto.

— Minha mãe, eu sou um desgraçado! Eu não te disse que a Carmem me enganava?...

— Que foi, meu filho? Que foi? — atalhou a matrona, a aflição estampada nos olhos. — Apanhaste-a em flagrante?

— não, senhora; mas ela teve criança esta noite, e teve dois filhos de uma vez!

— ?...

— Um eu sei que é meu; e o outro? O outro... eu não sei de quem é...

Residindo nas proximidades da Vila Militar, a Etelvina Ribeiro sonhara, desde menina, com uma marido que usasse farda. Aos quatorze anos teve como namorado um sargento do 1° batalhão de engenharia, que a esqueceu quando foi transferido. Aos quinze, namorara um segundo tenente de artilharia. Aos quinze e meio, um primeiro tenente da cavalaria e, pouco, depois, um capitão da companhia de metralhadoras. Aos dezesseis, fora rebaixada, e passara, de novo, a gostar dos tenentes, representados por um grupo de obuses, e por outro, da artilharia montada. Aos dezessete anos de idade era Etelvina um verdadeiro campo de manobras, em matéria de namorado. Até um sargento aviador havia feito um "raid" sobre o seu coração experiente. E era esta a sua condição quando se apresentou, disputando-a, o tenente Filomeno Coutinho de Medeiros. Militar honesto e futuroso, que a procurava com a mais sincera idéia de casamento.

Coração apaixonado, o tenente buscava, há muito tempo, uma oportunidade para aproximar-se da menina. Acompanhava-a, seguia-a, cercava-a, mas o destino não permitia, jamais, uma troca de palavras. E foi quando, por um acaso, se viu, um dia, ao lado dela, no trem que vinha para a cidade.

— Oh, que felicidade! — exclamou, a voz trêmula. — A senhora por aqui?

Sorriso no canto da boca, a mocinha olhou-o, com garotice.

— Ah! É o senhor? — disse , como se já o conhecesse há muitos anos.

Aproveitando aquela entrada, o rapaz tomou a ofensiva, abrindo-lhe de par em par o coração. Contou-lhe a sua paixão, os seus propósitos de noivado, e a ventura que esperava da vida se ela, boa, pura, honesta como era, lhe concedesse a esperança do seu amor. Terminada aquela confissão tão sincera, tão leal, tão profunda, a menina olhou-o, de cima a baixo.

— De que arma é o senhor? — perguntou.

— Da cavalaria, — informou o tenente.

— Ah, não quero! — respondeu a pequena, peremptória.

— Usam chilenas! — acrescentou.

E como a responder ao olhar interrogativo do rapaz:

— Rasgam muito a camisa da gente!

(Theodore de Bamville)

O pequeno visconde de Salar e Coralia Bredo reproduzem exatamente aquele quadro célebre em que, de pé, e sonhador, o re Felipe II, de Espanha, em traje de corte e ornado com o seu chapéu de plumas, contempla a amante nua, deitada sobre o seu leito de repouso. Apenas, como os hábitos evoluíram desde esse tempo, Corália se cobre de um levíssimo véu transparente, e o pequeno visconde, envenenado de japoneseria e de impressionismo, enverga um costume de passeio inteiramente violeta, o qual, desde o chapéu e a gravata de seda até as meias e os sapatos, percorre toda a gama simbólica do roxo e canta a sua música silenciosa com o mais perfeito dandismo.

Embora excêntrico, e singular, Anatolio de Salar é encantadoramente inocente e adora Coralia com um sentimentalismo tomado às escolas abolidas.

Admira ele, comovido e em silêncio, as belas formas expostas aos seus olhos, quando, de repente, solta um grande suspiro.

— Querida, — diz, à sua amiga, — eu queria, no teu pescoço, na tua fronte, nos teus braços divinais, descobrir, para beijar, por menor que ele fosse, um lugar que ninguém tivesse beijado ou tocado antes de mim!

Admira ele, comovido e em silêncio, as belas formas expostas aos seus olhos, quando, de repente, solta um grande suspiro.

— Querida, diz, à sua amiga, — eu queria, no teu pescoço, na tua fronte, nos teus braços divinais, descobrir, para beijar, por menor que le fosse, um lugar que ninguém tivesse beijado antes de mim!

A cortesã levanta-se, espantada com aquela pretensão. Como, porém, fora estudante do "Quartier Latin", e como os problemas científicos não lhe desagradavam, ele se decide a admitir a hipótese fabulosa, e responde, tranqüilamente, com uma filosofia doce.

— Afinal de contas, — diz — isso pode nuito bem ser, e eu não direi que não.

E com um sorriso triste, misto de incredulidade e de fé:

— Tudo existe na Natureza...

A informação que a viúva Barroso Viana tinha recebido de Minas era de uma nova desgraça na família: a Rosita, sua sobrinha, filha do seu irmão Rafael e órfã de pai e mãe, havia sido seduzida por um rapaz de Juiz de Fora, o qual, além de casado, era escandalosamente protegido pela política. Ao ter notícia do caso, os tios, as tias, os parentes, todos, haviam repudiado a menina, como indigna. Uns, a queriam abandonada na rua, recusando-lhe o pão e o nome. Outros, alardeando generosidade excessiva, preferiam mantê-la num asilo, encarcerando-a aí para o resto da vida. E foi quando chegou ali a carta da tia Lalá, a viúva do coronel Barroso Viana, pedindo-lhe que lhe mandassem a pequena, que ela, aqui, se responsabilizaria pelo seu destino.

Ao beijar a sobrinha, a linda viúva, condescendente como toda gente "chic" da cidade, sentiu, logo, por ela, uma grande ternura. Aqueles grandes olhos negros e confiantes, aquele sorriso bom, em que se banhavam uns dentes miudinhos e iguais, aquele rosto pálido, de criança sofredora — mostraram de pronto, à sua perspicácia feminina e apurada, que podia fazer daquela primavera florida o consolo honesto do seu outono. Nada de violências, nada de opressão. Eram mulheres, as duas, e podiam entender-se perfeitamente...

No dia seguinte ao da chegada, conversavam, já, como confidentes, e Rosita contava, ingênua, o seu infortúnio:

— Foi o Dr. Georgino, um rapaz alto, moreno; bonito rapaz, — dizia.

E descrevia o episódio:

— Eu tinha ido passar o dia na casa de minha tia Elisa, quando, na volta, ele começou a me acompanhar, falando-me quase junto da orelha... Aquilo foi me embebedando, me atordoando. De repente, quase eu tenho uma vertigem; apoiei-me no braço dele, ele chamou um carro, e levou-me para uma casa que era uma beleza, de luxo. E foi lá, então, que ele me desgraçou...

— Completamente? — indagou, interessada, a viúva, passando-lhe a mão fina, e alva, pelo cabelo negro, ondulado, luzidio.

— Completamente! — confirmou Rosita, muito vermelha, escondendo o rosto nas mãos.

Uma onda de piedade inundou o coração compassivo da formosa senhora.

— Sossega, minha filha, sossega, — tranqüilizou-a, bondosa.

E, com um sorriso brejeiro, apertando-lhe a cabeça de encontro ao seio forte:

— O que passou, passou...

A caravana havia abandonado, na véspera, os seus camelos, na fonte de Siloé, e os três príncipes marcham, agora, a pé, e sozinhos, rumo de Belém pelas terras áridas que vão de Jerusalém ao mar Morto. As suas sandálias fazem rolar os seixos soltos pelas encostas, e vão, os trz6es, meditativos: à frente, Melchior, com o ouro; no meio, Baltazar, com o incenso; e atrás, destacando-se da noite sem lua apenas pela alvura do seu manto, Gaspar, o africano, portador da mirra cheirosa.

De qual, daqueles presentes, mais gostará o pequenino rei recém-nascido? — pensam eles, caminhando em silêncio.

— Com o ouro que eu levo, — imagina Baltazar, — comprará ele o seu palácio e a sua coroa, vestindo de túnicas suntuosas a multidão dos seus lacaios. Serei o preferido do seu coração.

— O incenso é destinado aos deuses — reflete Baltazar. — A minha homenagem falará ao seu orgulho, e à sua vaidade. Serei o primeiro na sua estima.

— A mirta é humilde e perfumada. É com ela que as mulheres se tornam mais desejadas, quando esperam, no fim da tarde, os amantes que andam no campo. Serei o confidente de sua vida, e cúmplice atento do seu desejo, — pensa Gaspar.

Melchior era claro, Baltazar era moreno. Gaspar era preto. Vem desse tempo, desse fato, e do desaforo dessa lembrança, o castigo, que pesa sobre os moleques, de servirem de alcoviteiros na vida amorosa dos brancos.

O comendador Bartolomeu Barata era, naquele tempo, no Rio, o maior entusiasta do "turf". Criador inteligente, os seus parelheiros raramente perdiam, sendo notáveis, nas corridas do Derby, as vitórias do "Pimenta", filho de "Camaleão", sobre o "Bolina I", que havia derrotado a égua "Uberaba", em São Paulo, e a "Graciosa", em Buenos Aires.

O grande fator dos triunfos obtidos pela coudelaria do comendador Bartolomeu não estava, entretanto, nos seus cavalos, mas, sobretudo, no jockey que os montava: o Rafael, rapaz de mão segura na brida, e que, lépido, ágil, risonho, se escanchava em uma sela, no prado, como quem se escancha em uma cadeira, num salão.

Com vinte e seis anos, moreno, olhos agateados, o jockey era duplamente célebre: pelos prêmios que levantava seguidamente, todos os anos, e pela simpatia com que era olhado pelas mulheres, principalmente pela Julita, amante do próprio comendador, a qual, mal este saia, telefonava logo para a cocheira, chamando o Rafael.

Não há nada, porém, mesmo em matéria de amores secretos, que se não venha a saber. Escondem-se dois amantes no céu, todos os dias, por trás de uma nuvem, e dias depois, toda a gente saberia do caso, na mais remota constelação. Foi o que sucedeu com a Júlia, o Rafael e o comendador, que, ao fim de pouco tempo, era inteirado, por uma carta anônima, dos encontros dos dois.

Informado da hora em que o jockey, deixando a cocheira, se ia meter na casa da rapariga, o velho "turfman" preparou-se para surpreendê-los. Escondido em um botequim da esquina, viu-o entrar, olhando de um lado e de outro, na denúncia do seu mau pensamento. E não havia decorrido meia hora entre a chegada do Rafael no palacete da Julita, quando Bartolomeu irrompeu pela alcova, indo encontrá-los, pasmados, uns nos braços do outro.

De um pulo, enquanto a traidora mergulhava sobre a colcha, o jockey estava no meio do quarto, de meias, sem gravata, o cabelo desgrenhado.

— Sim, senhor, sr. Rafael!... — fez o comendador, balançando a cabeça.

Olhou-o de frente:

— Quanto o senhor tem a receber, na cocheira?

— Seiscentos mil réis, — informou Rafael.

O comendador tirou três cédulas de duzentos, e entregou-lhas.

— Pronto; aqui estão.

Indicou-lhe a porta:

— Já! Ponha-se fora!

E sem ligar uma coisa com outra:

— Não quero mais que monte em cavalo meu!

No quarto de vestir malva e rosa, emq que os móveis de peroba clara punham uma nota risonha em cada canto, os cristais faiscavam, repletos de perfumes caros, denunciando a presença, ali, de uma mulher de luxo. E essa mulher era Albertina Baga, flor humana de vinte e dois anos, tipo autêntico de beleza moderna, esbelta, flexível, seios pequenos, oxigenada, cujos olhos grandes e negros o prazer bistrava quatro vezes por dia.

Viúva de um antigo diplomata sul-americano, havia se unido legalmente ao engenheiro Gomide Ramos, encantadora figura de milionário e de estroina, cuja mocidade se havia consumido toda em Paris, como um regato límpido se consome de passagem pelo Deserto. Casados, a vida era-lhes uma perpétua festa dos sentidos, interrompida, apenas, pelos jantares, pelos teatros, pelos chás, pelos passeios, pelas exigências, em suma, de uma vida intensamente elegante. Pálido, alto, espigado, os olhos marcados pelo monóculo e pelas vigílias, Gomide Ramos, a perna cruzada, vestido para sair, esperava, recostado no canapé, lendo um jornal da cidade, que a companheira desse último retoque à sua elegância. E Albertina andava de um lado para outro no aposento, pregando e repregando o vestido, retocando os tufos do cabelo de ouro, pés pequeninos, enluvados em meias cor de carne, mergulhados, como aves no ninho, nas pantufas de seda rosa. De repente, a moça parou de andar, sentou-se em uma cadeira de mola, a um canto, e, chamando a criada:

— Lola, traze-me os meus sapatos "marron", os novos.

E após um instante:

— Traze-me, também, a calçadeira.

Cinco minutos decorreram. A calçadeira na mão, curvada para diante na cadeira, a moça começava a impacientar-se. O sapato não entrava, irritando a dona, em cuja fronte vermelha de "rouge" e de sangue, o suor principiava a por um orvalho tênue, como o que as rosas recebem pela manhã. De súbito, Albertina amuou-se.

— Antonico?... — chamou.

E com gestos de criança mimada:

— Não entra, meu filho!

Absorvido pela leitura, Gomide Ramos ouviu a queixa por alto. O jornal na mão, lendo-o pelo quarto, levantou-se, o andar de sonâmbulo. No toucador, tomou uma bisnaga de metal, encaminhou-se para o canto em que a rapariga se calçava, entregando-lha.

— Toma!

E distraído, os olhos no jornal:

— Talvez entre...

Aquelas festas do comandante Brás de Oliveira acabavam sempre daquela maneira. As empadas, os sandwiches, os pastéis, o champagne, o wisky, os sorvetes, os doces, eram em tal abundância, que os convidados, às duas da madrugada em diante, eram em maior número à porta dos gabinetes reservados do que, mesmo, nos salões e em torno das mesas de jogo. A metade deles apanhava, infalivelmente, uma indigestão, e a outra metade um desarranjo interno para o resto da vida. Amigo do velho marinheiro, Vitoriano Sobreira estivera, naquela noite, no gracioso palacete da Avenida Atlântica. E tantos pastéis engolira, de mistura com fatias de "foie gras" e pinceladas de "caviar", regadas a Cliquot, que, às três da manhã, se escapulia pelo portão do lado, com a cartola no cocuruto, a capa no ombro esquerdo, o suspensório no direito, segurando com ambas as mãos o cós da calça, por cima do colete amarrotado. A gravata, essa, fora colocar-se em cima da carótida, como se fosse o enfeite natural da grande artéria.

A noite estava escura, e as ruas, àquela hora, completamente desertas. A cabeça pesada, as pernas leves, o Brás atravessou uma rua de bondes e, sem saber mesmo para onde ia, enveredou por uma travessa, que uma única lâmpada clareava. E ia, já, a meio do caminho, quando pulou de um vão de porta um vulto, legítimo tipo de "apache", o boné em cima dos olhos, um lenço ao pescoço, um revolver na mão direita.

— Alto lá! — gritou-lhe o salteador.

Vitoriano parou, automaticamente.

— Levante as mãos! — ordenou o bandido.

— Eu? — sorriu o rapaz, inconsciente. — Você não vê que eu não posso?

E com uma risadinha de ébrio e, ao mesmo tempo, de pândego:

— Eu levanto mas com uma condição.

— ?...

— Você me segura a calça!

(Imitado de Rodolphe Bringer)

A festa da Conceição em São Domingos do Rio do Peixe era o maior acontecimento de toda aquela zona do sul de Minas. Ia gente de toda a parte. E como fosse uma boa oportunidade para trabalhar pela maior glória da Religião, os bispos da diocese escolhiam, de ano em ano, essa ocupação para entrar em contato com as suas ovelhas. Esse foi o motivo de estar em São Domingos, nesse dia, Sua Excelência Revma, o bispo Dom José, que foi recebido festivamente por toda a população e, particularmente, por padre André de Sampaio, vigário da paróquia.

Padre André de Sampaio era uma figura seca, e alta, se sertanejo do norte. Moreno queimado, cabelo duro, cortado à escovinha, e já entremeado de fios brancos, andava pelos seus quarenta e oito anos. Era tolerante com os seus paroquianos, gente pouco igrejeira; e estes lhe pagavam a gentileza com os mesmos sentimentos, não indagando, jamais, do que ocorreria na casa do vigário, nem, mesmo, do que se passava na sacristia.

Metido na sua batina nova, Padre José mantinha-se atencioso, solícito, irrepreensível, como o chefe do episcopado. Já lhe havia mostrado o edifício da Câmara, o Foro, as capelas, a Santa Casa, e mostrava-lhe o dispensário da Matriz, quando Dom José indagou:

— E onde mora Vossa Revma.?

Ante essa curiosidade, padre André escondeu o seu sorriso. Mas aquiesceu:

— Moro aqui mesmo, atrás, no presbitério.

Minutos depois, percorriam os dois, o bispo e o vigário, o pequeno prédio que se levantava por trás da igreja, e que, pela sua exiguidade, espantou Dom José.

— E onde dorme Vossa Revma.? — perguntou o bispo.

— Aqui, Sr. bispo, aqui, neste quarto.

— E ela?

A essa pergunta, à queima-roupa, o sacerdote estremeceu, sentindo-se apanhado em flagrante.

— Aqui, também. Não há outro quarto no presbitério.

— Na mesma cama?

— Sim, Sr. bispo. Falta de lençóis. Mas nós pomos uma tábua entre nós. Aquele que a transpõe primeiro, paga dois mil réis de multa.

Nesse momento, a porta entreabriu-se, e a Gertrudes aparece.

— Lá isso é certo, Sr. bispo! — exclama a rapariga.

E batendo no ombro do padre André:

— Mas, também, o que é verdade, é que ele me ainda me deve quatorze mil réis da semana passada...

Com aquele busto maravilhoso, que entusiasmara até o casamento o coronel Praxedes Maia, comandante do forte de São Felix, Dona Lola era, aos trinta anos, a tentação dos rapazes da guarnição. Ao ver-lhe, à janela, o colo de rola satisfeita, o major Fernando Rocha exclamava, sacudindo a cabeça:

— Que busto maternal!...

E o tenente Frederico Ramos, que era mais ou menos poeta, repetindo os maravilhosos decassílabos de Raimundo Correa:

A Afrodite pagã, que o pejo afronta, Exposta nua do universo às vistas, Dos seios duros na marmórea ponta, Amamentando gerações de artistas, Não se excede...

E tinham razão, um e outro. O colo de Dona Lola era o orgulho e a glória da guarnição. Era-o, mesmo, de tal modo, que o tenente Abelardo Menezes, ajudante de ordens do coronel, passava a almoçar e a jantar na casa do seu comandante, o qual o deixava na sal a fazer as honras da palestra à formosa senhora, enquanto ele ia percorrer, uma a uma, as guaritas das sentinelas.

Certa noite, porém, tendo de ir à cidade, a chamado do ministro, chegou o tenente ao forte um pouco tarde, encaminhando-se, logo, para a residência do coronel, que havia deixado na sede do comando. Com a familiaridade a que se habituara, foi, logo, enveredando pela casa; mas para estacar na saleta, os olhos esbugalhados: na sala, no divã, estavam Dona Lola e o tenente Avelino Sampaio, que afundava a cabeça, filia, no colo soberbo da linda senhora.

Pé ante pé, retirou-se; e mal havia saído, rumo da sede do comando, cruzou no caminho, com o coronel, que ia, calmo, para casa.

— Vai surpreendê-los! — pensou, com um íntimo sentimento de vingança.

E não se enganou. Momentos depois, estava o moço oficial no escritório do forte quando apareceu o comandante. Vinha apoplético, furioso.

— Senhor tenente Menezes, dirija-se à minha casa, e dê ordem de prisão, ali, ao tenente Avelino, recolhendo-o preso.

De pé, a mão no quepe, o moço oficial recusou-se:

— Perdão, meu comandante; é impossível. Estou impedido, por ser parente do Sr. tenente Avelino.

E firme, teso, marcial, em continência, antes que o coronel lhe pedisse explicações:

— O Sr. tenente Avelino é meu irmão de leite!

O consultório do jovem médico Barreto Lopes estava cheio, já, às quatro da tarde. Senhoras, moças, crianças, homens idosos, manuseavam revistas ou liam jornais, matando o tempo, antes que o tempo os matasse. E, a um canto, visivelmente nervoso, o coronel Ribeiro Moura, cujo bigodinho pintado, escorregando do nariz, denunciava, nele, um desses velhos mundanos que não sabem capitular diante do inimigo eterno e querem aproveitar, por isso, até a última gota, o vinho capitoso da vida.

Afastada a cortina que vela a grande porta do gabinete de consultas, o contínuo faz um sinal, e o militar atravessa o salão, rápido, escandaloso, como uma granada que fosse estourar, formidável, nos pés do especialista.

— Então, coronel, que é isso? como tem passado? — indaga Barreto Lopes, arregalando-lhe o lho, para examinar-lhe a esclerótica.

— Ah! doutor!... estou passando horrivelmente, hoje!... A cabeça estala-me... parece que vou morrer... que vou me acabar...

E com ambas as mãos no coração:

— E que dor!... que dor!...

Olhos agudos de quem conhece a aproximação das crises como o caçador pressente a caça que vem longe, o médico pôs-se de pé:

— Não se assuste, — pediu, — mas, o senhor vai ficar de cama alguns meses...

— Eu, doutor?

— Sim; o senhor, talvez daqui a duas horas, talvez já, vai ficar paralítico.

— Paralítico, doutor? — gritou o oficial, horrorizado. — Paralítico?

— Sim, mas será uma paralisia parcial, só do lado esquerdo...

— Do lado esquerdo, doutor?... O senhor disse do lado esquerdo? — exclamou Ribeiro Moura, numa aflição, como um homem que vai entrar, inesperadamente, em combate.

E a uma confirmação do especialista:

— Então, doutor, com licença... com licença... O senhor tem aqui algum lugar reservado?... tem?...

O médico indicou-lhe uma porta discreta. Momentos depois, o oficial reaparecia, corrigindo a roupa, o ar feliz.

— Estou pronto, doutor.

E sentando-se numa cadeira, risonho, acomodando a calça, um risinho canalha sob o bigodinho do Carlito:

— Agora, posso ficar paralítico do lado esquerdo...

(Pierre Veber)

Certo, a lógica dos homens é o que há de mais penoso e inconseqüente. Quando João, que amava Mme. Paula, verificou que era correspondido, pediu-lhe a mão, e casou-se.

E foi-lhe logo, dizendo:

— Minha querida, os maridos que amam verdadeiramente são ciumentos. E eu te amo verdadeiramente.

— E eu te dei motivo para ciúmes?

— Não; mas todas as vezes que eu examino que és bela, fico a pensar que outros podem te achar bela, como eu te acho.

— Está bem, — disse ela.

E, para que o marido vivesse tranqüilo, deixou que a maternidade gastasse o seu corpo maravilhoso.

— E agora, ainda tens ciúmes?

— Oh, sim; os teus cabelos são longos, finos, sedosos e ondulados, e outros te podem amar só por causa deles.

— Está bem, — disse ela.

E para que o marido não vivesse em sobressalto, cortou, quase rente, os seus lindos cabelos sedosos.

— E agora, ainda tens ciúmes?

— Minha querida, os teus dentes são admiráveis, e, quando sorris, é tal o milagre da frescura, que eu temo que outro queira, também, comigo, partilhar a delícia do teu beijo.

— Está bem, disse a esposa.

E, para que ele não vivesse preocupado por sua causa, ela esqueceu os dentes, que se estragaram; e deixou de sorrir.

— E, agora, ainda tens ciúmes?

João tinha, porém, ciúmes dos seus lábios, dos seus olhos, das suas mãos delicadas; e quando, para que o esposo não vivesse em cuidados por sua causa, ela se despojou de toda beleza, ele ficou sossegado, e agradeceu:

— Afinal, não tenho mais ciúmes!

Dias depois, entretanto, comunicou-lhe:

— Sabes, minha querida, que estás, de certo tempo a esta parte, horrivelmente feia?

E tomou uma amante.

Terno cinzento, chapéu de palha, botinas amarelas, bengala de castão de ouro debaixo do braço, vinha o Castro Rocha pela Avenida, entre a rua São José e a Sete de Setembro, quando viu caminhando em sentido contrário o Arnaldo Lamenha, que fora seu companheiro de turma na Politécnica. Vendo-se, embora raramente, ou exatamente por isso, haviam continuado amigos, muito camaradas, festejando-se com palavras amáveis toda a vez que se encontravam.

— Olá, Arnaldo velho, como vai essa mocidade? — saudou o Castro Rocha, abraçando-o com efusão.

O Lamenha retribui o gesto, sorriu com felicidade, e puxaram-se, ao mesmo tempo, e num mesmo movimento, para a margem do passeio, afim de não impedir a circulação.

— É verdade, — reatou o Rocha, batendo no ombro do amigo, — tenho uma novidade a participar-te: mais um filho!

— Tu?

— É verdade.

— Homem ou mulher?

— Homem; um rapagão que é uma beleza!

— Então, meus parabéns, meu velho, — saudou o Arnaldo, aplicando-lhe outro abraço.

E como se faltasse alguma coisa:

— E a senhora, como está?

— Minha mulher? — fez o Castro Rocha, fechando a cara; — minha mulher, por enquanto, vai bem.

E ao ouvido do outro, confidencial:

— Felizmente, ela ainda não sabe de nada... Deus me livre que ela saiba!...

Não era de hoje, nem de ontem, que Abraão Efraim, o conhecido proprietário da casa de penhores Efraim & Irmão, nutria profundas simpatias pela esposa do seu amigo Isaac Fernandes. A sua fortuna, as suas lábias, as suas declarações pessoais e pelo telefone público, jamais haviam, no entanto, adiantado um passo no caminho da sua pretensão desonesta.

Com as mulheres, porém, não convém desesperar. Por trás de cada anjo da guarda há um demônio de atalaia, de modo que, à menor distração do anjo, o demônio toma conta do lugar. E a vez da substituição na casa de Isaac Fernandes chegou, naquela tarde cariciosa de maio, pouco depois do meio-dia.

Na véspera, havia a formosa senhora visto no mostruário de uma chapelaria, na Avenida, um chapéu, com o qual sonhara toda a noite. E pensava ainda nele, quando Abraão, o bigode retorcido e negro, o nariz israelita espiando para dentro da boca, subiu a escada, com a intimidade que tinha na casa.

A presença daquele pretendente iluminou, de súbito, o espírito da formosa judia. Um beijo em Abraão, se ele lh'o pedisse, e teria o chapéu.

— Bom dia, Raquel!

— Bom dia, Abraão!

— Então, já está resolvida a salvar minh'alma?

— Depende, Abraão. Se salvares a minha situação, eu salvarei a tu'alma.

E sentando-se ao lado.

— Olha, eu preciso, hoje, de quinhentos mil réis. É um caso urgente. Arranja-m'os, que tereis o que quiseres.

— É para já?

— Para já!

De um salto, Abraão Efraim estava na rua tomando direção. A casa comercial mais próxima, onde poderia arranjar o dinheiro, era a de Isaac Fernandes, marido de Rachel. Entrou lá.

— Isaac, empresta-me quinhentos mil réis por algumas horas? Pago-te hoje mesmo.

Vinte minutos depois, estava Raquel com os quinhentos mil réis, e Abraão, contente da vida, nos braços da mulher mais formosa produzida pelo povo de Israel. E descia, um a um, duas horas depois, as escadas da casa em que passara um dos momentos inolvidáveis da sua existência, quando, em baixo, nos últimos degraus, deu de cara com Isaac, que subia.

— Tu, por aqui, Abraão?

— É verdade, Isaac. Vim à tua procura. Muito obrigado, meu velho.

E apertando a mão do amigo:

— Vim pagar-te os quinhentos mil réis que me emprestaste... Deixei-os com a tua mulher...

O pessoal do "pic-nic" sacudia-se todo, como frascos de remédio, ao compasso descompassado do "shimmy", quando a Carlotinha e o João Benigno, iludindo a vigilância da mãe da rapariga, enveredaram pelo mato, em passo de fugitivos. E dentro de poucos minuto chegavam à sombra da mangueira imensa, perdida no matagal, de onde não se via ninguém mas onde chegavam, ainda, os uivos da orquestra esquentada pela cerveja abundante.

Há muitas semanas que os dois se conheciam e, mesmo, se desejavam. Todas as tardes, ao deixar o ministério onde trabalhava, o rapaz ficava pela cidade até as sete horas; para acompanhar o bonde, e, no bonde, até à casa, aquela graciosa "vendeuse" do grande estabelecimento de modas. Um dia, em conversa, ela lhe falara naquele "pic-nic, no Alto da Boa-Vista, como para dizer-lhe que fosse também. E ali estavam desde as oito da manhã, a dançar seguidamente, a exercitar-se com o contato intenso de dois corpos moços, com a música ardente e sensual e, de meia em meia hora, com cálices de licor ou de vinho. Em certo momento, os olhos em fogo, a face vermelha, as bocas semi-abertas num beijo que a ocasião não permitia, o moço propôs, apertando-a mais de encontro ao peito:

— Vamos sair daqui?

— Vamos! — concordou a "vendeuse", num arrepio.

E um instante depois, esgueiravam-se por aquela picada de mataria, indo ter àquele lugar selvagem, tão propício aos namorados arrastados pelo desejo.

Dizer-se qual, dos dois, se atirara primeiro aos braços do outro, juntando a boca sequiosa à outra boca que a esperava, seria difícil. O que não resta dúvida, porém, é que foi o João Benigno quem curvou sobre o leito de folhas secas o busto virgem da namorada, enquanto os pássaros se aquietavam, discretos, para melhor lhes dar a idéia de que se achavam, os dois, em uma alcova nupcial. Ao fim de um quarto de hora, pálido, as pernas inseguras, João Benigno suspendia pelas mãos o corpo trêmulo da namorada. Ao pôr-se de pé, muito branca, os olhos espantados, como quem desperta de um sonho ao mesmo tempo delicioso e terrível, Carlotinha fitou-o, horrorizada.

— João, meu filho, que foi que nós fizemos?!... — gemeu.

Cínico por natureza e, em parte, por embriagues, o rapaz sorriu, canalha:

— Uái! Tu pensas que eu sou profeta? Quem sabe lá?... Enfim...

E pondo o pé sobre um tronco de árvore, para abotoar o sapato:

— Eu, por mim, acho que foi menina!

(Max Viterbo)

Bismichnitt, o conhecido e próspero banqueiro berlinense, não queria ter filhos. Judeu de boa tempera, pretendia fazer economia de todos os modos, e evitava, por isso, todas as possibilidades de descendência.

Mme. Bismichnitt era, entretanto, de opinião contrária à do marido. Um filho, era o seu sonho, o seu ideal, o seu pensamento. E foi com esse tintuíto que, aconselho de uma das suas amigas mais íntimas, resolveu ir fazer uma estação nas águas termais de Kindermohl-Piot, sobejamente conhecidas pelas suas virtudes prolíficas.

Obtida a autorização do marido, madame seguiu para aquela estação de cura, afim de passar vinte dias. E já estava de viagem, quando um amigo de Bismichnitt o procurou.

— Fizeste uma asneira mandando tua esposa para Kinermohl-Piot. Tua mulher, quando regressar, vai te dar uma descendência, contra a tua vontade.

— Ah! Isso, não se dá, não, — duvidou o banqueiro israelita.

— Mas, se tem acontecido com a mulher dos outros!...

— É o menos... Com a minha não acontece. Eu sou comanditário do estabelecimento termal...

— ?!...

— E mandei afastar de lá o banhista!

A pequena sala forrada de um verde de folhas é como uma grande caixa de confeitaria. Aqui e ali, — azuis, vermelhos, amarelos, brancos, de todas as cores, — os bombons das almofadas. A um canto, encostado à parede, entre o "abat-jour" e a estante de músicas, longo como uma "tablette" de chocolate, o divã em que Mme. Efraim se recosta. A claridade rósea do "abat-jour" discretamente descido, a sua figura de rainha Tomiris destaca-se em linhas mais doces. É fina e esbelta como uma silhueta egípcia. Descendo-lhe pelo colo, a blusa de seda quase não faz o esforço de uma prega para saltar os dois planaltos dos seios. Aberto em V, o decote chega-lhe quase ao estômago, com a franqueza de uma porta de casa vazia, em que não há nada que se roube ou se veja. O cabelo, cortado à altura da orelha, é liso e negro, e comprime-se, sem protesto, sob o aro de ouro e pedrarias de um diadema, que é como uma roda de bastidor da fada Briolanja em que os vagalumes houvessem pousado... A seus pés, de joelhos, arrastando no tapete sor de morango as abas do fraque cinza, o visconde de Bastos Penha agita os lábios numa súplica nervosa, que só ela ouve.

— Já não é por mim, Helena, que eu te peço esse sacrifício... Tu amas, tu adoras o teu marido... É por isso, pois, que eu peço... Abre-me os teus braços... oferece-me a tua boca... deixe que a minha cabeça repouse na suavidade morna dos teus seios...

Duas mãos, como duas borboletas, descem, brandas, sobre a cabeça do rapaz, e comprimem-lhe o rosto magro e moreno, atraindo-o docemente. Os lábios quentes, em que o "rouge" põe um gosto de fruta, esmagam-se na sua boca.

— Vem! — geme a moça, num arrepio, — vem! Não é por ti... é por ele!...

E, atraindo-o ainda mais, os olhos cerrados:

— Meu marido gosta tanto de crianças!...

Curvado sobre a mesa onde redigia penosamente um bilhete à amante, o bacharel Anastácio não ouvia as passadas da mulher, que, no andar superior, se vestia para sair. Estavam em divergência há dois dias. De vez em quando a discussão estalava, trocando-se palavras, que atingiam o alvo e ricocheteavam com a mesma violência.

De repente, um perfume doce, de Royal Begonia, espalha-se pelo gabinete. E enquadrando-se na moldura da porta, abotoando nervosamente as luvas, a figura mundana, acentuadamente chic, de Dona Vivi.

Não é alta, nem baixa. Clara, olhos negros, boca rasgada, de dentes magníficos, é o tipo comum da raça. Os braços finos e brancos, descem, nus, como duas hastes de lírio, desde a confluência do corpo. Calça, no máximo, 34, e os sapatinhos, bicando as flores vermelhas do tapete azul, são como dois beija-flores sugando a mesma roseira.

De pijama, a cabeça curvada, Anastácio parece mais uma trouxa sobre uma cadeira do que um animal vivo. Não se move. Se se erguesse, toda a gente lhe veria a altura incomum, o nariz cumprido, o rosto longo e estúpido, os defeitos, em suma, que ele, como as serpentes, disfarça quando se enrodilha.

Fisionomia de indignação, as narinas batendo como as asas de uma pequena borboleta, Dona Vivi estaca, a dois passos do marido.

— Pronto; vou sair, — informa, sem delicadeza.

— Boa viagem, — responde o rapaz, sem voltar-se.

Dona Vivi morde, nervosa, o beiço vermelho.

— Preciso de duzentos mil réis, — adianta.

Um risinho canalha do marido dá-lhe um tremor de indignação.

— Se você não me der — explode, — terei de pedir a outro homem!

A essas palavras Anastácio volta-se, de súbito, na cadeira. A tempestade vai, com certeza, estalar. Vivi encolhe-se, como se já estivesse sentindo na cabeça, esmigalhando-lhe o chapéu, os punhos de ferro do marido. Enroscaram-se os dois: ela apavorada, ele, indeciso.

— Queres saber de uma coisa, Etelvina? — diz, ao fim de um instante.

E adoçando a voz:

— Arranja quatrocentos. Eu também preciso de duzentos...

Foi à porta da matriz da Glória que a conheci, pelo Natal. De longe, da escadaria do templo, eu lhe havia visto a figura graciosa emergir, pouco a pouco, da verdura do jardim. Era um maravilhoso tipo de brasileira: estatura mediana, olhos negros, morena, e uma boca petulante, de quem mata os beijos no nascedouro. O colo, forte e harmonioso, denunciava a mulher que conheceu, já, os mistérios do amor sem o suplício da maternidade. E tão suave cadência tinha no andar, que, quando começou a subir a escada, todo eu me embalava, como se ouvisse, com os ouvidos da alma, o ritmo de uma grande orquestra encantada.

Dentro, no templo, consegui examinar-lhe, melhor, os traços delicados da formosura. O nariz, era correto e fino: a tez, sem artifícios, era branda, e cetinosa, sem as queimaduras que as tintas costumam deixar. Possuía lindas mãos de dedos afilados, as quais voltavam, de instante a instante, as páginas claras de um pequeno missal de madrepérola.

À saída, acompanhei-a. Mulher nenhuma havia deixado em mim, até então, uma profunda impressão de honestidade. Sentia ímpetos de beijar-lhe as mãos, de joelhos, como se faz diante dos oratórios.

Tomamos o mesmo bonde, o das Águas Férreas. A paixão que aquela criatura me inspirava era de tal ordem, que eu, informado de que ela era esposa divorciada de um terceiro marido, me propunha, uma semana depois, a ser o seu quarto esposo, embarcando para Montevidéu, onde nos casamos de acordo com as leis do país.

De regresso, eu ia para a cidade, a bonde, quando me encontrei com o comendador Bonates, que, segundo soube pelas explicações da minha esposa, era velho amigo da família. Sem dar-lhe notícias do meu passo, resolvi pedir-lhe informações sobre a minha mulher.

— Ah! a Gerusa, não? Conheço-a muito. Conheço-a desde menina.

— Bom coração?

— Coração admirável!

— Belo espírito?

— Inteligentíssima!

— Leal?

— De uma dedicação sem nome.

— Fiel?

— Um modelo no gênero.

E com entusiasmo:

— Tão fiel, que perdeu o primeiro marido, perdeu o segundo, separou-se do terceiro e está em vésperas de arranjar um quarto, e sempre com o mesmo amante! Os maridos passam, e o amante fica!

E apertou-me as mãos, suado, pronto para descer.

Andrelisa, era o nome dela. Se o recebera na pia batismal da igreja do Pequeno Grande, em Fortaleza, ninguém poderia dizê-lo. O certo é que desembarcara com ele no Rio de Janeiro, quando aqui saltara, em 1918, em companhia de um escriturário do Serviço contra as Secas.

Esse funcionário, que se chamava Guilherme, demonstrara, desde que se relacionara com ela, um inteiro descaso pela sua missão oficial. Porque, trazendo a rapariga para o Rio, ele se mostrara descobertamente a favor das "secas", sabido, como era, que se tratava da moça mais "seca" do Ceará.

Andrelisa era, efetivamente, magérrima. De fisionomia corretíssima, não se lhe notava no rosto a deficiência das carnes. Do pescoço para baixo, porém, metia pena: podiam-se contar, um a um, os ossos do seu peito, as vértebras da sua espinha, as costelas, os ossos dos braços, das pernas, do pé. Tirassem-lhe o vestido, e ficaria patente, vivo, o mais formoso tratado de anatomia, porventura publicado no continente.

O funcionário Guilherme apegou-se, porém, ao esqueleto da Andrelisa, e trouxe-o. Aqui, procurou para ele uma tumba, e meteu-o. A tumba era, entretanto, na rua Conde de Lage, com uma porta de abrir e fechar, e, quando ele deu fé, os despojos tinham fugido com um deputado à Assembléia legislativa de Niterói, que se encantara com os olhos da rapariga, sem perguntar o que havia, em matéria de carne, dos olhos para baixo.

A surpresa do legislador fluminense foi dolorosa. No dia, porém, em que a teve, estudando a anatomia da Andrelisa, disfarçou-a, e bem. Deitou a rapariga num canapé, mandou que ela descobrisse o busto, e ficou a apalpar, um por um, os ossos da caixa torácica. Ao fim do meio-dia, a moça protestou:

— Afinal, que é que você está fazendo aí?

— Eu? — observou o deputado, sem levantar os olhos do "tabuleiro".

E satisfazendo-lhe a curiosidade:

— Estou jogando, filhinha, uma partidazinha de "dominó"...

O salão de pintura havia aberto, naquele ano, com uma concorrência desusada de trabalhos de mérito. Amoedo, os Timóteos, Santiago, Fanzers, Bicho, haviam concorrido com verdadeiras galerias. Ao lado de animais domésticos pintados para o almoço por um artista de São Paulo, via-se uma salada de alface de João Batista da Costa, seguida, logo, de uma abundante sobremesa de frutas, preparada por Augusto Petit para a Sociedade Nacional de Pomicultura.

O grande sucesso desse ano era, porém, a contribuição de Pedro Rogério, o artista vitorioso com que o Rio Grande do Sul acabava de brindar o Brasil. Forte, musculoso, bonito, com uma forte cabeleira negra e uns olhos negros como os cabelos, o jovem pintor brasileiro especializara-se em pintar bebês, de quatro anos para baixo. A sua galeria de crianças era um encanto, pela graça, pela inocência, pela verdade com que ele apanhava, num traço, numa atitude, num sorriso, toda a complexidade da alma infantil. Despeitados com o sucesso do provinciano de gênio os companheiros aventuraram pilhérias:

— Você já viu a Maternidade?

Ou, então:

— Já foi ver a "creche" do Paulo Rogério?

A afluência de visitantes era, entretanto, cada vez maior, mais numerosa. E toda essa gente se ia aglomerar, exatamente, ao longo do muro de que pendiam as telas do pintor riograndense, cujos pirralhitos, nas atitudes mais pitorescas e originais, faziam sorrir, com gosto, as pessoas que as olhavam.

Alma de "elite", com uma paixão acentuada pelas coisas da arte, mme. Torres Mota não se conteve, ao visitar a exposição, e foi, com toda a graça da sua elegância, apertar, efusivamente, a mão do artista.

— Seria um prazer, meu caro professor, acredite — dizia ela, toda num sorriso, sacudindo nervosamente a mão a Paulo Rogério; — seria um prazer para mim recebê-lo em nossa casa... Apareça!... Vá tomar um chá conosco...

Abigail Torres Mota morava, então, na Voluntários da Pátria, no riquíssimo palacete que o comendador Torres Mota, o velho e opulento capitalista das minas de enxofre de Panaguarú, havia mandado reconstruir. E era ali, nesse ambiente de luxo, de gosto, e de elegância requintada, que o pintor e Abigail fumavam, íntimos, a "cigarrette" da fraternidade na Arte, quando o comendador penetrou, repentinamente, no salão, a barriga servindo de proa, o rosto em fogo, os passinhos miúdos.

— João!... — exclamou madame, pulando do divã, e correndo a abraçar o marido. — É este o artista de que te falei... O professor Paulo Rogério...

E as mãos juntas, os olhos no teto, num entusiasmo que se confundia com o êxtase:

— Ah, João!... — rugiu o capitalista, os olhos fora das órbitas.

E segurando a mulher com o braço esquerdo, enquanto, com o direito, apontava ao artista a porta do salão:

— Já por ali, "seu" patife!

E empurrando-o, porta a fora:

— Quando você quiser "fazer" meninos, compre tela... Ouviu?

O Antoninho andava, apenas, pelos três anos, quando, com a moléstia da mãe, a pálida Dona Margrida, o pai, o dr. Marques Viana resolveu convidar, para tomar conta da casa e do menino, a sua cunhada Maria Carmem, que acabava de ficar viúva do engenheiro Belarmino Sampaio, falecido no Acre. A enfermidade da mme. Viana prometia ser longa, senão incurável. E como aquele "menáge" precisasse de quem o dirigisse, nada mais natural do que encarregar dessa missão a irmã da enferma, a qual, também, sem esse auxílio, ficaria exposta às maiores necessidades. Dois anos após essa nova organização doméstica, a doente não havia conseguido a menor melhora no seu estado. A paralisia que a atacara logo depois do parto, se não havia progredido a partir do terceiro ano, também nada havia diminuído. As pernas eram-lhe verdadeiros molambos, que a prendiam ao leito, de onde raramente saía, nos braços do marido e da irmã.

Foi por esse tempo, com cinco anos de moléstia, correspondentes à idade do pirralho, que o doente sofreu aquela emoção, maior que a morte, se lh'a dessem. Era um domingo à tarde, e os criados haviam saído. Cabelo cortadinho à inglesa, alpercatas sem meias, cantarolando baixinho, o menino arrumava uns tubos de madeira, procurando formar uma casa no tapete, junto à cadeira da enferma, quando notou que lhe faltavam algumas tábuas do brinquedo. Interrompendo a faina, sungando a calcinha curta, pé ante pé, afim de não despertar a mãe que cochilava, o Antoninho ergueu-se, e foi ao quarto da tia Carmem, que era o último, no fundo da casa. Distraído, com o pensamento nas tabuinhas que procurava e que deviam estar ali, onde brincara pela manhã, nem bateu, pedindo licença: empurrou a porta e foi entrando. Um grito naquela meia escuridão, foi o acolhimento que teve:

— Menino do "diacho"!...

E logo a tia, de um pulo, avançando sobre ele, pondo-lhe em baixo a calcinha, e aplicando-lhe nas nádegas, fortes, boas, estaladas, cinco palmadas, pelo desaforo de entrar no quarto sem bater, primeiro, na porta. Momentos depois, chegava o Antoninho no ponto de partida, a cabecinha entre os braços, sacudido pelos soluços, o rosto coberto de lágrimas:

— Ahn!... Ahn!... Ahn!... Ahnnn!... Ahn!... Ahn!... Ahnnn!...

— Que foi, meu filho? Que foi? — indagou Dona Margarida, bondosa, apertando-o de encontro ao peito.

— A ti... tia me... ba... teu!... — choramingava o pequeno, inconsolável. Ahn!... ahn!... ahn!... E eu acho... que el... la... ba... teu... tam... bém..., no... pa... pai... ahn!... ahn!... ahn!...

E sempre soluçando, a mão segurando a calcinha:

— Quando... eu... en... trei... ele... estava... também... com a calça... no chão!... Ahn!... ahn!... ahnnn!...

Frederico Pires Bolacha, funcionário do ministério da Agricultura, é uma dessas figuras masculinas de encantadora ingenuidade. Não há ninguém mais simples. Não há coração mais puro. Não há espírito menos eivado pela maldade.

Existe, porém, um Deus, que protege as crianças e os singelos de coração. E foi essa entidade invisível, mas real, que tomou à sua conta o Frederico, orientando-lhe os passos, e guiando-o, generoso, quando ele tratou de escolher mulher. Só, mesmo, Deus, ou o acaso, poderia reunir uma alma como a do Frederico a um coração inocente como o da Carlotinha Broxado.

O casamento desses dois anjos foi como o dos mortais comuns: convidados, flores, presentes, e, à noite, jantar em família. Após o jantar, as danças; e após as danças, a alcova nupcial, com todas as suas conseqüências.

Não obstante a sua inocência e, mesmo, por ter pertencido à repartição de estatística, o Frederico Bolacha conhecia perfeitamente a aritmética dos Evangelhos, na parte em que o Senhor manda crescer, e multiplicar. Pelo menos, o seu primeiro cuidado, ao recolher-se com a Carlotinha, consistiu em dispor os algarismos, para tirar a prova real, nove meses depois.

A Carlotinha é que não gostou, nada, da operação aritmética. Franzina e fatigada com as emoções do dia, mal o marido acabou de dispor os números, ergueu-se, com uma horrível dor na cabeça, que parecia lhe querer arrancar os miolos:

— Coitada da minha mulherzinha! — fez, amoroso, o Frederico.

E com aquela estupidez inocente, que foi, na vida, o segredo de sua felicidade:

— Você não está acostumada... Não é, filhinha?

(Rodolphe Bringer)

Quando se sai de Cliosclat pela estrada de Montelimar, a primeira casa que se encontra à mão direita é a de Anastácio Boudoufe.

Anastácio Boudofe, que fez uma linda fortuna em Lion, vive ali tranqüilamente com sua mulher, a qual tem cerca de vinte anos menos do que ele, e, formosa e coquete, vai demais a Monetlimar, onde há muitos tenentes de guarnição. Não sejamos, porém, alcoviteiros.

Não obstante haver na casa uma criada, Anastácio Boudofe, que tem a mão apertada, faz, ele próprio, as suas compras. E era para fazê-las que estava, naquele sábado na praça da localidade, com a sua cesta na mão, quando se pôs a contemplar, enamorado, os melões com que a Luísa tentava a gula da freguesia.

Anastácio Boudofe adora os melões. Vendo aqueles, de aspecto tentador, subiu-lhe água à boca, e:

— Estão maduros, estes melões?

— Um açúcar, sr. Anastácio!

— A como vende?

— Isso depende do tamanho.

Anastácio pôs-se a apalpar os melões, um a um, virando-os, revirando-os, num exame demorado e meticuloso. Enfim, parece decidir-se por um, lindo, verde, raiado de branco.

— Quanto é este?

— Um franco, meu caro senhor.

Anastácio repõe o melão no lugar, e recomeça a escolher.

— E este?

— Um franco e cinqüenta.

E Anastácio a pôr no lugar a mercadoria, par retomar outro melão, virá-lo, pesá-lo, sacudí-lo, até que, finalmente, deixando tudo, decide:

— Bom, fica para outra ocasião... Não me servem, não...

A essas palavras, a Luísa, que é a pior língua da região, põe as mãos nas cadeiras, num ar de desafio e de cólera:

— Ah, os meus melões não lhe servem, não? Pois, olhe, meu caro sr. Boudofe, deixe-me dizer-lhe uma coisa.

E decidida:

— Se o senhor tivesse apalpado e refletido tanto quando teve de escolher mulher, não era hoje o marido mais enganado de Montelimar!...

Foi pelo carnaval que a Marina cometera aquela irremediável leviandade. O rapaz era insinuante, bonito, maneiroso, e ela, atordoada, acompanhou-o por toda a parte. No dia seguinte, ao entrar no "atelier" de que era costureira, debalde procurou reconstituir a cena, para saber o que tinha feito. Um arrepio percorria-lhe o corpo, sacudindo-a. E a mocinha fechava os olhos, atônita, horrorizada com a sua situação.

Ao fim de um mês e pouco, principiaram a aparecer-lhe uns sintomas esquisitos. Uma inapetência irresistível afastava-a da mesa, à hora das refeições. Tonteiras, vertigens, vômitos ligeiros, vontade, uma vez por outra, de morder limões ou laranjas bem azedas, — completavam este quadro de sintomas. E em setembro, quando não,lhe era mais possível disfarçar o seu estado, deixou a oça o emprego, recolhendo-se à casa da mãe, confessando-lhe o mau passo que dera.

Marina não era, porém, criatura que se preocupasse muito tempo com essa futilidades. Ela não conhecia o verso dos "Lusíadas" em que se fala do destino a dar-se "aquilo que para dar lhe dera a natureza", mas possuía uma noção amável da vida. Se não fizera cousa boa, a consciência não a atormentava muito, arrancando-lhe pranto do coração. E, por isso, não compreendia aquela exigência da velha mãe, a desventurada. Dona Eleonora, ordenando-lhe que não pusesse pé fora de casa antes do desenlace do drama.

Esse sedentarismo revoltava a rapariga. E foi revoltada que ela, um dia, se vestiu à vontade, pôs o chapéu, e saiu para a cidade, a escandalizar as amigas, e os conhecidos, com aquela obesidade insolente.

À tarde, voltou. E foi uma tempestade.

— Minha filha da minh'alma, — gemia a pobre mãe, desolada. — Que é que tu foste fazer?... Tu estás maluca, minha filha?...

— Ora, mamãe! — retrucou a moça, estabanada. — Eu não fiz nada de mais.

E as mãos nos quadris ondulados, a carinha transformada numa careta:

— Eu fui levar o seu netinho para passear...

Foi em um baile de subúrbio que o pintor Abelardo Gomes viu, pela primeira vez, a Cleonices. Com a segurança de vista peculiar aos artistas, compreendeu o que havia de brilho, de graça, e de elegância naquela espada de carne mesmo olhada, assim, através da bainha ed seda daquele vestido. Estatura mediana, corpo harmonioso, tinha o busto firme, o pescoço direito e, nos olhos verdes, um mistério de oceano. A boca abria-se-lhe vermelha como um cravo, e a cabeleira abundante, que a sua coquetaria infantil alvoroçava, era como um turbilhão de ouro fervente, que as brisas agitavam.

Impressionado com aquela harmonia de formas, com aquela graça de maneiras, com aquela singeleza de atitudes, o pintor Abelardo pediu, instou, rogou, para que ela fosse ao seu "atelier", dar-lhe o modelo para uma obra imortal.

E ali estava a moça, tão pudica, tão branca, tão linda, diante do artista glorioso! De pé, uma toalha passada em torno do busto, a cabeleira fulva em desalinho elegante, ia fornecendo ao grande mestre o molde, a imagem, para uma grande tela imperecível. O rosto, os cabelos, o pescoço, os braços modelares, haviam sido, já, apanhados pelo desenho. O seio níveo, que pulara, como um pássaro, das dobras da felpa, estava reproduzindo, já, no esboço do quadro maravilhoso. E ia descer a toalha para mostrar o ventre liso, de virgem, quando ficou toda vermelha, como um fruto sazonado de súbito.

— Ah, professor, perdoe! Mas, eu sou pobre!... — gemeu.

Pousando o pincel na paleta, o artista olhou-a, sem compreender. E Cleonices, toda envergonhada, e ainda mais vermelha, cobrindo as faces de rosa com os dois alvos lírios das mãos:

— Eu não tinha mais água oxigenada...

— Eu jamais me atreveria a conquistar aquela senhora, que se me afigurava virtuosa em extremo, tal a sua gravidade, sua candura, a sua modéstia no trajar.

— Casada? — inquiriu um dos boêmios que se achavam à roda da mesa, no clube.

— Sim, — continuou o narrador; — casada com um médico, emigrado russo, ex-professor da Universidade de Odessa. Com a vitória da "Causa" ele abandonou a pátria, receoso de permanecer alí, com a esposa tão formosa exposta aos olhares dos membros dos tribunais revolucionários, antigos operários e marinheiros, tão concupiscentes como os nobres do tempo do Czar.

Ela, que se chamava Suzana, era filha de uns judeus de Ekaterinoslav, contava vinte e quatro anos e tinha sido discípula do marido na Universidade. Infundia-me respeito o velho eslavo, meio calvo, de longos bigodes, caídos aos cantos dos lábios, à Lenine. Morávamos parede meia e já me acostumara vê-lo, todas as manhãs, ir a caminho do colégio onde lecionava diversos idiomas, enquanto o marido ficava junto à janela a tirar da rabeca, em arcadas veementes, marchas que lembravam o guaiar do Aquilão nos pinheirais e o galopar de cossacos através das estepes cobertas de neve. Certa noite de frio intenso eu voltava do teatro, rouco, quase a ponto de não poder falar, quando, ao apear do automóvel, lobriguei luz pelas frestas das janelas dos meus vizinhos. Julgando que o doutor ainda estivesse a ler o seu Gogol, resolvi pedir-lhe uma poção que me aliviasse a garganta dolorida. Bati de leve na porta que se abriu de mansinho, deixando entrever o rosto sério do israelita; desconcertado, só então compreendendo a incivilidade dessa visita em horas tão adiantadas, perdi para logo a serenidade e, sem mais preâmbulos, entrei a balbuciar, numa voz sumida e cava:

— O marido de V. Ex. está em casa?

Ela levou o dedo indicador aos lábios.

— Está dormindo, — disse, de leve.

E num cicio, puxando-me pela mão:

— Pode entrar...

Passeando de um lado para o outro naquele "bandoir" forrado de azul, em que um tapete felpudo punha, ao lado do divã, uma grande mancha dourada, o poeta Alfeu de Miranda contava à amante, a linda Avelina Figueira, antiga Mme. Prado Mota, pequenos segredos da intimidade doméstica. Apenas de "combinação", deixando ver o colo farto os maravilhosos braços roliços, a rapariga encostou-se, preguiçosa, no divã semeado de almofadas de seda, acompanhando com os fúlgidos olhos de felino os movimentos vagarosos do rapaz.

Mãos para trás, jaquetão abotoado, olhos no chão, Alfeu de Miranda media os passos, e narrava:

— Minha mulher é assim: não tem ciúmes, não se zanga, não se irrita comigo. Saio quando quero e volto quando entendo. A minha vida mundana é-lhe indiferente.

— E ela te é fiel, sincera, dedicada? — indaga a rapariga.

— Fidelíssima. E apesar de sua indiferença pela minha vida amorosa, tem-me grande amizade. É uma esposa modelar. Um verdadeiro anjo.

— E se ela soubesse que tu tens amantes?

— Não se importaria, estou certo. É uma santa; já te disse.

Avelina ensaiou um sorriso malicioso, e insistiu:

— Tua mulher é de pau?

— De que? — perguntou o rapaz, estacando, de repente, no meio da casa.

— De pau — tornou a rapariga.

— Por que?

— Por que? — repetiu Avelina.

E sem esperar a confirmação:

— Eu te pergunto, filho, porque... não é de pau que se fazem as "cômodas"?

"6 de Maio de 1905. — Elisa, minha namorada, concedeu-me, hoje, uma "palavrinha".



"12 de fevereiro de 1908. — Elisa, minha noiva, trocou comigo, hoje, duas "palavras".



"9 de dezembro de 1924. — Elisa, minha mulher, disse-me, hoje, três palavrões".

Com os seus cinqüenta anos de homem ocupadíssimo, o Dr Viana Pacheco temia, embora injustamente, que a Natália, moreninha a quem protegia secretamente, caísse na vida aventurosa. Era casado, tinha um filho já rapazola e não podia, evidentemente, acompanhar a rapariga por toda a parte. E como a visse irritada contra a sua tirania, e preferisse perder a metade a perder tudo, tomou ele próprio, a iniciativa de uma proposta.

— Sabes, filha, — disse-lhe ele, um dia, com cuidado; — é preciso que tu andes acompanhada por alguém que vele por ti. Vamos, pois, fazer uma coisa: arranja um rapaz direito, novo, que me substitua quando eu não possa andar a teu lado. Eu o sustentarei, e a ti. O que eu quero é que tu não caias nas mãos de todo o mundo.

— Como tu és bom, meu amor! — foi a resposta da moreninha, enquanto lhe cobria de beijos os olhos, a barba grisalha e a calva resplandecente. — Eu já havia pensado nisso, e tem, até, aí, um rapaz, muito moço ainda, que se presta admiravelmente para essas coisas.

— Então fala com ele, e leva-o, à noite, ao São José. Eu vou mandar-te das cadeiras, e fico na terceira, perto de vocês.

À noite, estava o ilustre advogado no lugar estabelecido, quando, com o teatro na penumbra, entraram a Natália e o meninote. Sentaram-se na mesma fila: o velho de um lado, o jovem do outro, e a rapariga entre os dois.

De súbito, clareia tudo. E ia Viana Pacheco voltar-se, quando viu estender-se para ele a mão do rapazola que entrara com a Natália.

— A benção, papai!

Olhou, e estremeceu!

Era o filho.

(Catule Mendes)

São duas horas da noite, d'uma noite de primavera clara e fresca, e Julieta, encostada no peitoril da janela, espera o amante. Soltos os cabelos, o pescoço estendido, o olhar de quem espreita, estremece ao menor ruído.

Tinha ouvido, já, o rodar de muitos veículos, e, julgando que paravam à porta, sentia bater o coração. Um carro único, piedade cruel do acaso, parou.

— É ele; com certeza que é ele!

Engano. Era o morador do terceiro andar, um homem gordo, cujo nariz, brilhando na escuridão, lembrava uma brasa.

Julieta escutou ainda, atentamente, o ruído de passos no passeio da rua, os quais ressoavam no silêncio do quarteirão deserto e solitário. Mais d'uma vez julgou reconhecê-los; mas, ou era o cocheiro da Companhia que virava a esquina, com o seu chapéu de oleado branco, e que, a pé, se dirigia para casa, de chicote na mão; ou algum bêbado, que caminhava encostado à parede. Zangou-se por fim, bateu o pé, e fechou com ruído a vidraça. Justamente nessa noite trazia o coração cheio de ternura; a primavera tinha-lhe dado bons conselhos, e tencionava encher o amante de felicidade. Sentia vontade de chorar, mas as lágrimas não se viam e avermelhavam as pálpebras sem necessidade. Fechou as portas com violência.

— Não vem? Pois o pior é para ele, quer venha, quer não; já não estou disposta a esperar mais!

Entra para o quarto, desfaz os caracóis, desaperta o colete, põe o livro sobre a mesa da cabeceira ao lado do castiçal, deixa cair as saias, desabotoa as botinas, tira as meias, e, mudando a camisa, mete-se no meio dos lençóis daquele leito frio e deserto, depois de ter estufado o travesseiro, furiosamente, aos murros. Apenas, porém, se deita, ouve o barulho de uma chave a entrar na fechadura, abrir-se uma porta e depois outra... É ele! Julieta, que finge dormir, voltada para a parede, dia, então, consigo, sorrindo:

— É assim mesmo; o melhor meio de fazer chegar um conviva retardatário é, mesmo, pôr o jantar na mesa!

O deputado Belarmino Guedes e o capitão-tenente Correa Jorge haviam descido de um bonde de Botafogo na Galeria Cruzeiro, quando o primeiro apontou um vulto feminino que caminhava diante deles, o passinho apressado.

— Bonita pequena! — disse.

O outro concordou:

— É muito linda. É mesmo, uma das mulheres mais bonitas do Rio.

Enquanto os dois conversavam, a figurinha fugia, na frente, ganhando distância, como se compreendesse os comentários que despertava. Era um tipo miúdo de brasileirinha elegante. Cabelo cortado, boquita vermelha, pele de seda naturalmente colorida, vestia a moça, nessa tarde, um costume de inverno azul-marinho, bordado de vermelho e verde na bainha da saia e da jaqueta frouxa. O chapéu azul, com flores de cor dos enfeites do vestido, parecia, na sua cabecita graciosa, mais um brinquedo de criança do que uma coquetaria de mulher. E quando caminhava, ligeira, ágil, fugitiva, era como se fizesse malabarismos para sustentar sobre a cabeça gentil aquela pequenina pétala de rosa encantada.

— É realmente, muito linda, — tornou Belarmino Guedes.

— E o marido é um belo homem.

— Que marido, nada! — protestou o primeiro, voltando-se. — Ela não é casada; é solteira, ainda.

— Ora, deixa-te disso! — objetou Correa Jorge. — Eu a conheço muito. E mulher do Batista carvalho, que advoga com o Paulo Simpson!

A discussão animou-se. Correa Jorge entendia que a dama era, já, esposa. Belarmino Guedes achava que não: era uma menina solteira, filha do comendador Lopes Aires.

— Olha, filho — acabou por dizer Correa Jorge; — podes afirmar o que quiseres: mas eu não creio que aquela menina já esteja casada. Eu sou como São Tomé.

E parando no passeio, para acender o cigarro:

— São Tomé só acreditou depois que pôs o dedo na chaga.

(Jules Moy)

Matusalém e Jacob viajavam em estrada de ferro, e aborreciam-se.

Matusalém convida Jacob:

— Vamos jogar um pouco, Jacon?

— Vamos, Matusalém.

— Eu apanho um na minha cabeça, Jacob.

Matusalém e Jacob arrancam cada um o seu animal do couro cabeludo respectivo, põem-nos lado a lado sobre um pedaço da tábua, soltam-nos ao mesmo tempo.

O de Matusalém chega primeiro. Triunfante, ele o retoma entre os dedos, colocando-o de novo na cabeleira.

— Por que puseste o piolho de novo na cabeça, Matusalém? — indaga Jacob.

— Tu não vês logo, Jacob, que eu vou pôr fora uma parelheiro como este?

De quantas pessoas a gripe de 1918 inutilizou, nenhuma foi tão lamentável, nem tão infeliz, como a senhorita Guiomar de Almeida Guimarães, filha mais velha do comendador Dionísio Guimarães, do Banco Hispano— Português. Basta dizer que a desgraçadinha ficou cega, e de modo irremediável, no momento, exatamente, em que chegava ao esplendor a sua encantadora formosura dos quinze anos.

Na esperança de um remédio providencial, esperou a desventurada menina durante meses, a volta da luz aos seus olhos admiráveis; e era nessa esperança que estava, há dias, na sala paterna, mergulhada na sua noite sem aurora, quando ouviu, de repente, um rumor suave, de abelha que chupa, chuchurreando, o cálix de uma rosa desabrochada. Ouvido atento, a desgraçadinha compreendeu, logo, com o seu instinto de mulher, o que se tratava: era sua irmã Margarida que estava à janela com o noivo, e que celebrava, com certeza, com ele, a aurora do seu noivado.

Adivinhando a felicidade da irmã e compreendendo a sua desgraça, a mocinha empalideceu, com o corpo frágil tomado, todo ele, por um grande tremor. E foi trêmula, pálida, que chamou, afetuosa:

— Margarida?

A irmã não respondeu.

E a desventurada, a voz flébil, braços estendidos:

— Tenham pena... de uma... pobre... ceguinha!...

E rompeu em soluços.

Nunca se vira, em Copacabana, insistência como aquela. De manhã, no banho, ou à tarde, no "footing", lá estava o rapaz ao lado da pobre moça, torturando-a com a lembrança do seu amor sem correspondência.

— É possível, Armando, que eu um dia lhe queira bem, — dizia-lhe a pequena, com aborrecimento; — mas não tenha grande esperança. Distraía-se, passeie, procure esquecer.

Ele, entretanto, teimava:

— Não, senhora. Eu espero. Eu tenho confiança. Um dia, eu serei correspondido.

Iam vivendo assim, — ela importunada, ele importunando-a, — quando, uma tarde, vendo-a sentada na areia, perto das ondas, ele se foi chegando, até que se sentou ao lado da vítima.

O mar, muito azul, estava admirável, nesse dia. Harmoniosas e redondas, as vagas vinham delonge, rolando, até que rebentavam de encontro às pedras das proximidades da Igrejinha, como se uma grande toalha de rendas que se rasgasse. O rapaz olhava esse espetáculo da natureza, quando, virando-se para a moça, lembrou, estirando o dedo na direção dos rochedos.

— Está vendo? — disse. — Aquilo, Dona Júlia, é o símbolo da minha constância. Eu sou a onda, e a senhora é a pedra. E água mole me pedra dura...

E fitando-a, triste, enquanto ela corava:

— Tanto bate, até que fura...

(Pierre Veber)

As crianças que uma insônia precoce tivesse conservado acordadas nessa meia-noite de Natal, teriam tido uma singular concepção de Noel, se houvessem levantado os olhos para o teto do prédio nº 55 da rua Marboeuf. Efetivamente, sobre o telhado da casa, errava, a essa hora, um indivíduo sem o tradicional burel de linha branco nem cesto de brinquedos às costas, mas, apenas, com o traje habitual dos "apaches" e um pacote de ferramentas na mão.

— Bolas! — exclamava este, entre os dentes. — Querem ver que hoje ninguém sai de casa e eu tenho de passar a noite sem comer!

A essa hora, exatamente, no prédio 55, uma pobre criatura suspirava e gemia, na tristeza do seu destino. Era uma dama de uns cinqüenta anos, famosa na vida galante do seu tempo, mas a quem o declínio do corpo havia afastado da atividade mundana.

— Bons tempos! — meditava a mísera. — Há vinte anos, que Natais, os meus! Eram o Rogério, o Gustavo, o Emílio... E o Dorty, pai... E o Dorty, filho... Quanta champagne! Quanta loucura! Quanta alegria!... E hoje...

Soltou um suspiro, estremeceu toda, e:

— Será possível que Pai Noel se não lembre de mim?

Nesse momento, porém, um ruído surdo e contínuo se propaga pela chaminé, e vem aumentando, até concluir com um baque forte, em baixo, no fogão. Assustada, a velha dama pula da cama, olha para a chaminé, e o seu rosto se ilumina todo, num sorriso. É que vê lá dentro, de envolta com a cinza, uma figura de homem vestido de "apache", todo sujo de fuligem, mais forte, robusto, musculoso.

— Vem! Vem, meu amor!... — exclama, puxando-o pela blusa. — Anda, vem te lavar... Vem cear comigo!...

Pai Noel, fazendo estalar, no telhado, o cimento da chaminé, quando o salteador nele se apoiava meditativo, não se havia, como se vê, esquecido dos dois...

Datava de um ano, mais ou menos, a perseguição de que era vítima aquela encantadora senhora morena, esposa, na acepção legal do vocábulo, do ilustre advogado Severino Peixoto de Magalhães. O perseguidor, o capitão-tenente Barros da Gama, não a deixava um só instante. A moça mostrava-se, porém, irredutível — não tanto, talvez, por si mesma, pelos seus escrúpulos de coração e de consciência, mas, sobretudo, pela atitude que assumiria o marido se descobrisse, um dia, a sua leviandade.

A situação de Dona Cotinha era essa, quando o Municipal anunciou, um dia, em récita de uma Companhia Francesa, "Tendresse", de Henri Bataille.

— Vamos, filhinha? — convidou o Dr. Severino. — Vamos?

— Vamos! Concordou a moça, indiferente.

No dia seguinte ao do espetáculo, quando a criada já servia o café, lembrou-se Dona Cotinha da sua noite da véspera, indagando do marido o que achara da peça de Bataille.

— Não sei, filha. Aquilo é um tema que faz a gente meditar muito; sabes?

E preocupado:

— Eu pensei muito naquilo, durante a noite. A minha intransigência nessas coisas de honra, é o que tu sabes. A dor daquela rapariga que confessa ao companheiro a sua traição era, porém, tão impressionante, tão sincera, que eu acho que, na situação dele, não iria tão longe: perdoava-a, não esperando que a velhice, a tortura, os sofrimentos, me viessem abrir de novo o coração!

— Tu perdoavas, então, a mulher que, como aquela Marta, te enganasse?

— Perdoava! — confirmou o advogado.

Testa franzida, coração em conflito com a consciência, o Dr. Severino tomou o último gole de café, acendeu o cigarro, beijou a mulher, e saiu. E mal havia ele desaparecido no canto da rua, Dona Cotinha tomou do fone, pedindo uma ligação:

— Alô! É você, comandante?

E ante uma confirmação:

— sabe de uma coisa? Eu estou resolvida! O Severino perdoa!

E contentíssima, os olhos faiscando.

— Vou-me vestir... Já vou!